Participou da exposição individual
O professor deverá ser o último a se retirar,
mesmo nos dias de chuva,
pela Temporada de Projetos do Paço das Artes - 2019
Participou da exposição individual
O professor deverá ser o último a se retirar,
mesmo nos dias de chuva,
pela Temporada de Projetos do Paço das Artes - 2019
Participou da exposição individual
Capítulo 1: O corpo mente menos que as palavras,
na Oma Galeria - São Bernardo do Campo - SP - 2018
Participou da exposição individual
Capítulo 1: O corpo mente menos que as palavras,
na Oma Galeria - São Bernardo do Campo - SP - 2018
Participou da exposição individual
Capítulo 2: O professor deverá ser o último a se retirar, mesmo nos dias de chuva,
na Casa do Olhar Luiz Sacilotto - Santo André - SP - 2018
Participou da exposição individual
Capítulo 2: O professor deverá ser o último a se retirar, mesmo nos dias de chuva,
na Casa do Olhar Luiz Sacilotto - Santo André - SP - 2018
Participou da exposição individual
Capítulo 2: O professor deverá ser o último a se retirar, mesmo nos dias de chuva,
na Casa do Olhar Luiz Sacilotto - Santo André - SP - 2018
Lusque-fusque: o pulo do peixe - Amanda Tavares - exposição individual Lusque-fusque - OÁ Galeria - Vitória ES - 2023
a pedra e o pântano - bruno novaes - curadoria da exposição Elã de Hanz Ronald - galeria plexi - são paulo - 2023
casa-de-montanha - bruno novaes - exposição O-lândia de laerte ramos - galeria estação - são paulo - 2023
Carta a Bruno Novaes (ou estudos do tempo) - Leandro Muniz - para a exposição individual COIR - Bianca Boeckel Galeria - São Paulo - 2022
entre coisas ordinárias e elementos de estima - bruno novaes - exposição fragmento-memória de carol ambrósio - ateliê 284 - são paulo - 2022
Trabalho em dupla - Érica Burini - exposição individual - Espaço Marco do Valle - Campinas - 2022
O homem incapaz - Mateus Nunes - para a exposição individual Complete as lacunas - 2022
para cantar as notas [conselho de classe] - Bruno Novaes - Revista Presente - 2022
Os mundos das coisas e as coisas do mundo - Fabiana Bruno - posfácio do livro Diário 366 - 2021
São Paulo, 02/03/2021, 23h52 - Julia Lima - prefácio para o livro Diário 366 - 2021
Modos de contar o tempo - Julia Lima - exposição Diário 366 - 2021
escola de brincar - Bruno Novaes - O jogo que continuamos a brincar, mesmo depois de grande, é a brincadeira do esconde-esconde
Victor Santos - Hecatombe - 2021
Character education - Adam Zucker - Artfully learning - 2021
Intervalo - Diran Castro - 30º Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo - 2020
O processo de formação como obra - Leandro Muniz - Revista Select - 2020
Escola de faz-de-conta - Bruno Novaes - Revista Tonel - 2020
As coisas que nos cercam - Milena Espinoza - Grupo Entre Educação e Arte Contemporânea - UFES - 2020
Bruno Novaes e os dias de chuva - Mirtes Marins de Oliveira - catálogo Temporada de Projetos Paço das Artes - 2019
Entrevista Paço das Artes - Mirtes Marins de Oliveira - Temporada de Projetos Paço das Artes - 2019
Entrevista Arte Londrina - DAP - Arte Londrina 7 - 2019
Capítulo 2: O professor deverá ser o último a se retirar, mesmo nos dias de chuva - Julia Lima - 2018
Capítulo 1: O corpo mente menos que as palavras - Julia Lima - 2018
Segredos aprisionados em garrafas de ar - Juan Casemiro - 2015
Lusque-fusque: o pulo do peixe
A coisa do peixe é o preparo: um peixe preparado para voar. Mas o movimento característico de se debater faz com que nos escape às mãos, entre a expectativa da obediência a um comportamento tão diverso à sua própria natureza, voar, e a inventividade que lhe torna apto a driblar o destino determinado das águas e inventa[ria]r outros mais desejáveis, ainda que improváveis; como, por exemplo, voar. Tudo que se aprende se pode aprender de outro jeito e por outra razão. O embate mora entre o desejo e o preparo.
O que o peixe nos deixa de mais palpável, portanto, é o embate em si. Encarnado aqui na noção dúbia de um termo, ele percorre todos os trabalhos expostos, movendo-se entre aquarelas, desenhos, papéis de carta e objetos de âmbito doméstico ou infantil, que driblam o caráter aparentemente pacífico de suas materialidades, iluminando suas próprias ambivalências. Na obra de Bruno Novaes, nada está apaziguado. Basta chegar perto.
A atmosfera dócil é aparente e captura, de pronto, a parcela nostálgica e acolhedora da memória de um certo imaginário doméstico e cotidiano. Bons tempos em que colecionávamos papéis de carta, carrinhos, vidrinhos de perfume; que o amor nos beijava pela primeira vez a boca, que deixávamos, sem juízo ou prejuízo, a língua percorrer a fundo as embalagens açucaradas, as mãos alcançarem as flores de qualquer jardim. Mas, naqueles tempos, o faz de conta já era feito tanto de regras negociadas e definidas de forma explícita quanto de acordos velados ou impostos e de cumplicidades cruciais. É de pequeno que se começa. Entre o dito e o não dito; o pensado e o intuído; a norma e o drible, seguimos crescendo.
Foi Carlos Drummond que disse que "onde não há jardim, as flores nascem de um secreto investimento em formas improváveis". Repare bem: elas nascem. Lusque-Fusque! Nem dia nem noite, na hora duvidosa, na virada da chave, na entrega ao embate, quando não tem ninguém olhando. Elas até podem ser vistas das janelas dos carrinhos na paisagem que corre. Brotam nas frestas dos muros, nas paredes infiltradas, nos mesmos vidros de perfume, potes de geleia ou manteiga, num adesivo colado, no modo de empilhar palavras desfeitas em vasos de amores imperfeitos; em tons vibrantes e translúcidos; no balanço das folhas, no pulo do peixe; nos sentidos moventes das palavras e daquilo que nomeiam; nas correspondências que se arranjam e rearranjam entre os trabalhos e o próprio entendimento do colecionismo como forma de se perceber no mundo e agir sobre e com ele.
Amanda Tavares
para a exposição individual Lusque-fusque
OÁ Galeria - Vitória - ES - 2023
a pedra e o pântano
Isso que se deu em nós desata de uma brisa que toma o corpo todo e vira vento a passear a pele. É impulso que não se controla e que se espalha para além. Nunca vou esquecer como os seus reflexos mudavam no espelho turvo da água que atravessava. Parece que foi ontem, parece que foi aqui. Você a cruzar o portal mágico que ainda vibra atrás de ti. Me mostrava aquilo que fazia. Desenhava para reter, numa tentativa de capturar a variação da vida e se infiltrar, em silêncio, nos quadros — pelos cantos. Te falei da relva, do bosque e dos banhados. Te mostrei onde nasce a fonte do desejo. Acho estranho que você nunca tenha percebido com esse seu olhar invertido para aquilo que anda escondido. Mas entendo que tenham coisas que escapam e que só somos nós a partir do momento em que sabemos viver com elas. E então aprendemos a nos mover, a habitar o mundo pelo sopro. Transitar no terreno instável da fantasia. É nele que você nos fundiu. Entre o natural e o artifício, entre o real e o fictício. Celebrando a representação do mundo numa vida hedônica de imagens fugidias. Aparições que nos convidam a desejar e que sugerem serem vistas no tempo de um eclipse, no instante em que o sol passa por seus olhos. No calor do movimento. Em suspenso, como um espelho d'água que reflete o voo dos pássaros. Ou no arroubo que eclode a cobra de névoa a trocar de pele. Como aquele beijo no escuro. Como a duração de um olhar. Coisas que se demoradas, podem evaporar. Assentamos, então, no amálgama dos licores que fazem surgir as aparições que acendem nossos humores. Brindo com o que brota em mim depois — resíduo que você deixa e que também te marca. Sinais que localizam iguais em nuvens, sonhos e fumaças. Agora vivemos esta existência velada por trás das telas de onde citamos a vida. A partir daqui suas mãos habitam dois mundos. Você tem a chave da passagem. O seixo para ser lançado e fazer vibrar a pele lacrimosa até as bordas. Sedimento que toca o leito no fundo, pelo lado interno. Berço que me sopra aquilo que você quer dizer ainda que no instante antes do seu balbucio. Na iminência do seu toque no pincel de crina a roçar a nuca do tecido esticado no pau de madeira. Toda vez que você escolhe esse caminho enviesado você descobre que é sua tarefa achar o meio das coisas e fazer do meio também um modo. Figura-fundo. Linha-forma. Dentro-fora. Você volta da água ao avesso e escuta além do eco de seu fluído. É este o labirinto inconsciente que germina o invisível. E é nele que você vai se ancorar de agora em diante. No acúmulo de vontade das coisas que acontecem dentro de você. Vai então fazê-las saírem numa dança lenta de miragens. Estas são as suas figuras. A sedução em círculos que se penetram e se perpetuam. Corpos que se encontram e desencontram em frente aos nossos corpos. Cenas que revelam nos nossos rostos os registros íntimos que você guardou para si — os enxames das portas dos banheiros, os heróis aquadrinhados de outrora e os livros que formaram o que chamam de História. Dá pra sentir os lampejos das pessoas que passaram, antes da gente, pelos campos que você pisou. O que resta delas nos gramados, nas águas, sobre as mesas. Embaixo dos troncos se vê o vulto dos torsos que elas olharam e contornaram em linhas vívidas que vagam nas nossas cabeças. Ser você me confunde mas é possível que essa gente da charneca saiba o que estávamos fazendo afugentando os pássaros naquele fim de tarde. Entre a querença e a querela. Em tom apurpurado que é meio mágico — de goela que engole a cor do segredo — que é meio sangue que resta dentro. Pois eu lembro que cada pessoa que mata o que ama deixa algo que não morre.
Antes que eu possa dizer sobre onde nos tocaremos daqui em diante. Antes que você suma de novo em zonas úmidas. Antes que eu volte para as sombras da brenha. É desse encontro que tivemos que nasceu o que você se presta a fazer. A busca incessante pelo equilíbrio entre o seu âmago e o âmago da matéria que tenta dominar. Mesmo que depois, em êxtase, você não se lembre de você. Mesmo que num ato mágico a massa escorra pelos lados e crie volumes autônomos com os quais você vai precisar conviver. São desses surgimentos que nascerá o sol em novos amores e outros verões. São essas coisas que dão dentro, que habitam fora, e que animam o espaço entre os mundos. Isso que faz uma imagem ser mais que ela mesma. Ainda que você passeie o tronco em busca de cores novas. Ainda que vire a página e descubra a espinha que sustenta o fio. Ainda que eu sopre em voz menor e só se escute o coro frágil e engasgado das aves. No meio da noite, numa curva em que possamos ficar a sós, você sabe que eu vou te guiar. Entre a pintura e o desenho. Entre a obra e esboço. Entre aqui e lá. Quando você olhar de novo, te encontro no meio. No toque de tudo e de todas as coisas.
bruno novaes
agosto de 2023
Elã - individual de Hanz Ronald - curadoria - (Plexi Galeria, São Paulo)
casa—de—montanha
a-dul-to
Pessoa que em toda coisa que fala, vem primeiro ela.
[Andrés - 8 anos]
Criança que cresceu muito.
[Camilo, 8 anos]
Casa das Estrelas, Javier Naranjo.
— BOOM —
Torre de comando.
Falamos aqui entre ninhos.
Alguém nos escuta?
É chegada a hora de trocar a pelagem e vestir nossas asas de ferro que nos levarão até outra porção de terra. No caminho, do alto, dá pra ver os desenhos que o estouro grafou. Linhas de histórias num chão feito em andares. Se vê o que nele há repousado por baixo e que nossos olhos perdiam no passar dos dias. Precisamos calibrar e encontrar um lugar seguro de pouso.
— CATAPLOFT —
Assentar nunca é fácil. A queda, talvez, tenha embaçado tudo aqui. Já não é possível separar o que é pau, pedra e barro. Distinguir as cores lavadas no céu. As coisas parecem nuvens que saltam as noites contando estrelas. O piso é instável. Há pedaços dele que rolam, outros que afundam. Há solo acima e abaixo. Os destroços se misturam a nós e à terra. Vamos ter que aprender outros modos de estar no mundo. Desmontar nossas asas e descobrir do que elas são feitas. Cutucar o que há à nossa volta e conhecer o que vive dentro. Acho que assim poderemos inventar os nossos novos pedaços de chão e começar a habitar um lugar.
— TICTAC —
Miramos o Sul que nos guia no céu, visto em pontos jorrados pelos buracos das águas que abrimos. Escalamos a pele da casa. De lama, nos cobrimos. Escavamos túneis como os dos bichos que comem pau. Cada canal está ligado a outro e a outro e a outro, mais de uma vez. Labirinto de onde se parte e para onde voltamos. Aprendemos a grafar nossas pistas no chão e a encontrar os seus desenhos refletidos no ar e nos espelhos de água e pedra. Nos dias que ressoam, ouvimos os solos das aves em revoada. Nas noites acavernadas, carimbamos nossas vozes em co[u]ro. Nossas tocas são mais ocas que as que sabíamos por lá. É dentro delas que cantamos os ontens em linhas morenas. Para elas, voltamos toda noite, embriagados na pelagem, pelos banhos das gemas. Nossa terra tem contornos como cânticos rotundos. Nos confortamos, mútuos, no umbigo do mundo.
— TCHARAM —
É sexta. Aquele dia em que eles vêm nos visitar.
Parecem intrigados como os da semana passada. Falam palavras de espanto e surpresa para os que trazem em linha. Dá pra ver alguns de baixa estatura cutucando os buracos. Mais atrás, ouve-se alguém dizendo que parece já ter visto algo assim em outra redondeza. Uma senhora, de casaco verde, sussurra se lembrar de um quadro na sala da casa da avó. Um sofisticado diz que descobrimos a fórmula da repetição e que ela é a lei que rege o mundo dos brinquedos. Diz isso enquanto fuma um charuto e conta que aprendeu isso com um tal de Walter. Não o Disney, o Benjamin. Há quem se impressione com os nomes das coisas e as coisas sem nome. Tem gente que tenta adivinhar do que é feito o chão, o céu, o ar. E tem gente que parece não se importar. Aqueles ali do canto bebem bastante e balbuciam alguma coisa sobre folhinhas e almanaques. A turma do outro lado aposta em fazendas, cavalos e casas na lua. De repente, ouve-se, em alto e bom tom, uma voz de trovão vibrar os prêmios e os doces que voltam à sua mente, agora que a infância parece estar sedimentada aqui. Não é muita gente que nota ou sabe o trabalho que tivemos. Como nossos ossos estão comidos de barro. Como ainda ouvimos o zumbido da queda. O quanto demora construir um mundo e habitá-lo. O que é e como se escuta o tempo da terra. Como foi encontrar meios para re-viver em O. Mas talvez essa discrição nos vista como um elogio. É muito habilidoso, de nossa parte, dar ao mundo, sem que isso seja uma importunação, uma coisa que parecia já estar ali. É preciso destreza, curiosidade e carinho para encontrar o que há dentro. Certa habilidade para deixar-se escorregar no desmontar das fundações. Labor para descobrir o truque silencioso das coisas e seu jogo de regras internas. Alguma malícia que, de supetão, derrube a cortina. E um desejo de fazer tudo de novo e de novo.
brunøvaes
junho 2023
para a individual de laerte ramos -- o-lândia -- na galeria estação -- são paulo - sp
Carta a Bruno Novaes (ou estudos do tempo)
Querido Bruno,
Nos conhecemos por volta de 2015, em um período inicial de nossas práticas. Outro momento do país, quando tudo parecia mais promissor, estável e contínuo. Algo que, sabemos, não se confirmou com os desmoronamentos dos últimos anos. Naquela época, você incorporava seu trabalho como professor na própria materialidade dos seus trabalhos artísticos, levando a uma série de indagações sobre essas relações e também a um movimento autorreflexivo. Agora, em 2022, muitos outros assuntos, procedimentos e experiências constituem o corpo do seu trabalho e para essa exposição nós assumimos, desde o início, uma dinâmica espiralar, embaralhando tempos e escalas, mas preservando o fundo intimista que marca a sua produção. Aquarelas apenas. Desde um trabalho de 2013, em que três pernas são desenhadas em uma visão de baixo para cima, como alguém que espiasse pelos vãos das divisórias de banheiros públicos, até trabalhos deste ano que estavam no ateliê, como a Coluna-raiz. Historicamente, a aquarela foi relegada ao estatuto de estudo, talvez por sua praticidade de construção, já que a mistura de água e pigmento é o recurso mais elementar para a fixação da cor no papel, e os diferentes usos sociais dessa técnica estão no imaginário do seu trabalho, desde ilustrações de livros infantis até os desenhos botânicos. Pequeno jardim de delicias é uma catalogação de flores que têm potencial tóxico, gerando a encruzilhada ‘beleza x veneno’. E como as coisas são organizadas? Pergunta intrínseca a uma série de trabalhos com calendários, mapas, réguas, ou um inusitado jogo-do-bicho que inclui um ornitorrinco, nos quais a presença de grids buscam esquadrinhar o mundo, mas demonstram os limites internos do método classificatório. E aquilo que escapa, não cabe ou mistura muitas categorias? Uma dupla de trabalhos que representam Quartinhas, esses objetos relacionados ao processo de iniciação na Umbanda, demonstram como outras formas de pensar, como os afetos, sua experiência com a espiritualidade, ou a poesia, orientam o trabalho, para além da racionalidade ocidental. Não à toa o contraste entre palavras e frases também é uma constante. E se peixes quisessem voar como pássaros? E se batatas e azeitonas se movessem como quadrúpedes? No limite, e se nós fôssemos outras coisas para além daquilo que sabemos? Na parede em frente à porta de entrada, colocamos Nota [para escola de faz-de-conta], que representa um lembrete no qual está escrito “morada, vida, mundo, casa de festas (tempo / suspenso)”, em formato de equação. Uma espécie de sinopse ou síntese do conjunto, que, em sua variedade, mostra os tantos procedimentos que você manipula com a aquarela. Além das diversas associações entre os signos e narrativas elencados, nos interessa uma temporalidade múltipla, que é assinalada pelo título da mostra:coir. Ir junto. Ir ao mesmo tempo. Neologismo adaptado do francês e que vem de sua leitura de Coir: álbum sistemático da infância, de René Schérer e Guy Hocquenghem, traduzido na tese de Eder Amaral e Silva. A elaboração dessa exposição tem nos feito pensar como as coisas, humanas e não humanas, são formadas e sobre aquilo que não cabe nas categorias “formais”. Nos supermercados não vemos as bananas ou cenouras que nascem grudadas umas nas outras. Nossos corpos, como pessoas cuir, também tendem a não caber. Formação é um processo contínuo que, longe da noção idealista de que se chegará a um projeto acabado, implica incorporar, reagir e desviar dos acidentes de percurso. Espero que essa exposição abra novas voltas, articule outras perguntas e resgate pontas soltas na sua prática.
Um abraço
Leandro Muniz
para a exposição COIR
na Bianca Boeckel Galeria - São Paulo - SP - 2022
entre coisas ordinárias e elementos de estima
isso tudo já estava aqui antes de você chegar
e é por já estarem aqui que guardaram em si os resíduos dos gestos
agora te vejo manipulá-las como quem coleciona as coisas libertando-as da servidão de servir
para que não sejam coisas que esperem por ele
para que não sejam mais cacos nas mãos delas
mas para que se ancorem na força dos seus cabelos
e assim possam ganhar a oportunidade de falar
- o que elas têm a dizer?
- o que nós temos a ver com os rastros dos mortos?
- e o que eles iriam pensar se descobrissem suas heranças?
o legado pode ser uma carga indesejada
herdamos, às vezes, mais do que nos cabe
seja em volume, seja em silêncio
nos deixam o que lhes valeu
ressoam nas nossas vozes
nós os portamos em nossos corpos
e os vazamos em potes, urnas, baús, caixas, latas, gavetas
tentamos colecionar como quem tenta salvar
como quem busca interpretar o destino
como aquela criança que inventava o seu próprio mundo
você nos abre a porta desse lugar imaginado e nos convida a entrar
tudo aqui parece já ter sido assim antes
como se você tivesse a árdua e doce missão de reunir os cacos que se desuniram lá atrás
num tempo em que um pires e um abajur não deviam ter se separado
quando aquela xícara não merecia ter se despedaçado
ou no momento exato em que uma rosa nasceu e a última estrela caiu
carolina, a gente passeia pelas criações com as quais você nos presenteia e, ainda que suas metades tenham passeado pela casa de penhores, pelos antiquários, pelos brechós das avós, ainda que elas tenham sido presentes de outros tempos e em outros corpos, elas parecem, finalmente, ter encontrado o seu destino
como fortunas descobertas, aparentemente, ao acaso
que, embora nos abram os cortes e as feridas dos pedaços de nós,
nos devolvem, em meio às frestas, a chance de (de)morar no tempo das coisas
bruno novaes
11.11.22
para Carol Ambrósio
no contexto de sua exposição individual
Fragmento - Memória [tudo parece já ter sido assim antes]
curadoria Laerte Ramos
São Paulo SP 2022
A tarefa de se juntar com um colega para realizar um trabalho, o trabalho em dupla, tão familiar ao ambiente escolar, pareceu um bom jeito de falar sobre as várias formas de encontro entre dois elementos, que – sejam iguais, diferentes ou complementares – se empenham na construção conjunta de algo. Esse, que é um dos primeiros exercícios de alteridade ao qual somos submetidos, atua como espinha dorsal desta exposição, que já nasce como duplo: ao mesmo tempo que os trabalhos de Bruno Novaes são expostos no Espaço Marco do Valle, também é exibido o Diário 366, no MAC-Campinas.
E é isso que nos faz começar pelo Apêndice. O que geralmente vem no final dos livros, aqui é o nome de dois trabalhos que aparecem logo no início da exposição. O primeiro remete ao Diário 366, apresentado a apenas 600 metros daqui. Uma fotografia de um pai ensinando a um filho é posta ao lado de uma página pautada com campos para preencher data, local, assunto e participantes de um dado compromisso. De um lado, a transmissão calorosa de saberes, do outro, a rigidez das reuniões de negócios agendadas. O segundo Apêndice, decompõe a imagem paternal do primeiro. Os planos da fotografia são desagregados e aparecem em uma espécie de radiografia que chama atenção para a construção visual da cena. Elementos como roupas, gestos e sombras, se destacam como veículos dos conhecimentos legados que formam o sujeito, pela aceitação ou pela recusa.
Então, são evidenciados os primeiros duos: as duas exposições, os dois trabalhos de mesmo nome, a fotografia e a agenda, o pai e o filho, eu e você, que está lendo; o artista e eu, que escrevo. Conforme adentramos as salas, vemos mais pares, dualidades e antíteses que se atravessam ou se confundem. O professor e o aluno, o exemplar e o falho, a obra e o público, o artista e a curadora, o souvenir e a lembrança, os antônimos, o observador e o observado, a construção e a desconstrução, o objetivo e o subjetivo, o documento e as entrelinhas não ditas, entre outras relações que somos convidados a procurar. Seja quando duetos ou quando duelos, os diálogos não são suaves. Requerem negociação, concessão e conciliação, e alguns encontros geram embates que promovem mais limites que potencialidades.
Dentre as relações investigadas nas obras, predomina a mão dupla formada pelo ensino e pela aprendizagem, que são olhadas por Novaes nas maneiras como acontecem – e como aconteceram no passado – na esfera formal e também no âmbito informal. As construções de subjetividade são exploradas, nas maneiras como se dão a partir de relações familiares, profissionais e afetivas, bem como a partir das imagens que nos cercam e dos objetos de consumo. Entre a reflexão e a interação, o trabalho de Novaes nos ensina na mesma medida que aprende conosco, lançando constantemente perguntas sobre os diversos lugares e agentes da educação. Quem pode ensinar? Quem pode aprender? Onde se pode ensinar? Onde se pode aprender? E quais são os conteúdos que ensinamos e aprendemos?
Érica Burini
texto para Trabalho em Dupla
exposição individual
Espaço Marco do Valle - Campinas - 2022
O homem incapaz
Imaginemos um homem que não pode. Um homem que, sem motivos concretos, tem sua palavra duvidada, suas atitudes questionadas e suas formas de pensar censuradas. Cuja postura é criticada, crucificada, exposta e amplamente discutida, a tribunais abertos onde todos são juízes, chefes de pequenos impérios. Um homem que tem sua capacidade desvalorizada, que nem tudo sabe, que nem tudo pode, que nem em todos os lugares está. Sob as matrizes do senso comum, imaginar esse homem incapaz — sobretudo sendo ele cisgênero, branco, com formação acadêmica e sem nenhuma deficiência física — é extremamente difícil.
A sociedade contemporânea ocidental impôs definições estritas de masculinidade e feminilidade, numa perspectiva pífia fundamentada na binariedade dos gêneros e na ferrenha misoginia. O cenário supracitado é cotidianamente vivenciado por mulheres pelo fato de serem mulheres. Nos panoramas atuais, essa construção imagética e heroica do homem aproxima-se com uma visão divina - não por acaso esse homem ideal é onipotente, onisciente e onipresente. As consequências práticas sobre seus erros são ditadas por outros fatores, sobretudo raciais, socioeconômicos, de orientação sexual e de gênero.
Na casa e na escola infantil, lugares de cuidado e zelo, perpetua-se a dinâmica falha de que quem cuida é a mulher, enquanto o homem é cuidado. Nas universidades, entidades governamentais e grandes instituições, o cenário se inverte: o homem ensina e a mulher aprende. De forma injusta, os poderes gozados pelas pessoas que se encaixam nessa masculinidade normativa são infinitamente maiores do que os possíveis às mulheres, aos homens que se aproximam de um modelo convencionado feminino ou às pessoas que não obedecem à tosca divisão binária de gênero. Paulatinamente, em grandes fôlegos de coragem, desacelerados pela atroz violência social brasileira, somos consolados com ondas confiantes de mudança. É nesse caminho revitalizante de esperança que se encontra o trabalho de Bruno Novaes.
A prática e a pesquisa do artista nos confrontam com as limitações e censuras contidas na determinação comum de masculinidade. Complete as lacunas, sexta exposição individual de Novaes – e primeira individual em Porto Alegre –, busca exibir os vazios no atual sistema dominante e investigar possibilidades de respondê-los, flertando com um tom imperativo dos comandos de questões de exames escolares. O artista indica três eixos que estruturam o sistema educacional atual: o patriarcalismo, o colonialismo e o heterocentrismo. De forma canibal, a estrutura se retroalimenta desses princípios, criando e mantendo empecilhos para que esses assuntos sejam de impossível debate com os alunos, ou mesmo incorporados a novos projetos pedagógicos mais plurais.
No trabalho Quais as distâncias entre o seu corpo e o corpo que lhe ensinaram? (2016/2021), o artista reitera a condução do pensamento através de uma matriz violenta não somente no campo pedagógico, mas também no campo epistemológico e científico, onde a própria “produção de conhecimento” é nutrida e estruturada por esses ideais – como o racismo científico de Nina Rodrigues e a repulsa pelo contato íntimo com pessoas de mesmo sexo de William James, por exemplo. A obra, que grafa tanto a própria pergunta em caligrafia escolar, delicada e regular, quanto propõe combinações múltiplas de sobreposição e deslocamento do corpo humano nu em repetidas imagens de mimeógrafo, permite visualizar o conhecido diagrama de crescimento do corpo humano com outras possibilidades de identidade de gênero. Diante da obra, permite-se a autorreflexão individual do observador e análise se, de fato, há uma identificação espontânea com os estereótipos de corpos e gêneros que usualmente são ensinados no sistema educacional. Os mesmos mecanismos questionadores são retomados por Novaes em Apostila de ciências: ensino fundamental (2016), com título a partir de um jogo de palavras que declara que, nessa estrita educação do caráter, os moldes heteronormativos e cisgêneros são realmente de ensino fundamental, no sentido estrutural do termo.
A apresentação dessas pluralidades reais é vista como um discurso violento, quando, na verdade, o silêncio sobre esses tópicos perpetua uma sociedade violenta. A tinta vermelha que escreve O resto do mundo não tem qualquer interesse na obra homônima (2020) serve como alegoria ao sangue derramado pela ineficácia em cadeia do sistema educacional brasileiro – que, não nos esqueçamos, é planejada, não acidental. Esse sangue, vermelho pulsante, pode ser lido como instrumento de correção: assim como o vermelho da caneta do professor e da professora corrige, aponta os erros e pune, a violência é resultante de uma tentativa de correção social, de violentar quem não se encaixa nas normas estabelecidas e esperadas. Quando nos debruçamos sobre essas questões, a impressão, de fato, é que o resto do mundo não tem mesmo qualquer interesse – como aponta o título da obra de Novaes. A estratégia militaresca de uma aprendizagem que tem a repetição como ferramenta basilar, objetivando um resultado quase mecânico, moldado e previsível, serve como mecanismo de manutenção das corrupções tradicionais.
Em Corpo decente (2018), instalação composta por dezenas de quilos de giz branco de lousa, pintura meia parede com tinta esmalte brilhante e áudio de 50 minutos em looping com depoimentos de professores censurados e discriminados, Novaes materializa seus questionamentos-protagonistas em um cenário que, ao mesmo tempo que aparenta ser escolar, flerta com a desordem. A pintura meia parede em esmalte, embora traga cor e certo aspecto lúdico e mais amigável ao rígido ambiente branco da sala de aula, tem um principal aspecto funcional: evitar manchas e sujeiras na parede, resultantes do contato das mãos e dos pés sujos das crianças em sua brincadeira irrefletida ou dos desenhos no tempo congelado da ingenuidade. As vozes e histórias de professores tolhidos pelo estrito sistema educacional reverberam pelas paredes e se espalham pelo amontoado de gizes indiferenciados que jazem ao chão, no canto da sala, quase como em posição de castigo. Nessa pilha tumultuada, é impossível distinguir o que foi – ou seria – usado para ministrar aulas sobre guerras e sistemas reprodutores, e os que desenhariam jogos de amarelinha no chão, ou obscenidades infantis desenhadas no momento de intervalo entre as aulas, sem a supervisão dos professores. Todas as barrinhas cilíndricas, da mesma cor e do mesmo diâmetro, são apinhadas de forma massificada e desregrada, sem respeitar as possíveis individualidades que cada giz poderia traçar.
A educação de crianças na sociedade ocidental contemporânea, como já mencionado, é mormente capitaneada por professoras mulheres, que carregam consigo uma imagem de afabilidade e de proximidade à figura materna. O vínculo familiar da figura feminina é quase forçado, fazendo com que as crianças usualmente as chamem de “tias”. A partir dessa visão tacanha, se faz impossível – ou duvidoso, pelo menos – um homem adulto aproximar-se de crianças sem que a balança seja desequilibrada: ou o homem regride cronologicamente ao estado da criança, numa pseudo-infantilização; ou a criança é avançada no tempo ao estágio do homem adulto, promovendo uma hipersexualização dos assuntos a serem conversados. Esse professor, portanto, ou é visto como limitado, em uma situação onde seus questionamentos e gostos aproximam-se aos de uma criança; ou é visto como pederasta, onde a aproximação tem a exclusiva finalidade afetiva e sexual.
A obra Jogo dos erros (2018) narra uma história de discordância onde, em um ofício rasurado – para resguardar a individualidade do sujeito –, famílias de religiões conservadoras acusam o professor de aliciar os alunos ao apresentar-lhes uma realidade julgada como inapropriada. De forma metalinguística e irônica, Novaes escancara os erros: as interferências conservadoras, as dissonâncias ideológicas e a restrição do sujeito na educação formacional infantil. As possibilidades de amar e de ser amado, de aceitar e de ser aceito, e de aprender a conviver com as diferenças são rasuradas – assim como faz o artista nos ofícios fotocopiados – ou apagadas – como o pó de giz que repousa sobre o descanso dos apagadores de feltro à base da lousa. O professor queda-se incapaz. Novaes reitera que, ao início da aula, quando a campa toca, as diversas vulnerabilidades pessoais não devem ser guardadas, mas utilizadas como ferramentas e processos educacionais; e, ao fim da classe, quando resta só o professor com seus apontamentos, em uma sociedade tão dura e áspera, lembre-se da convocação de Paulo Freire: “amar é um ato de coragem”. Que sejamos corajosos e incapazes.
Mateus Nunes
para a exposição Complete as lacunas
no EFL Cultural - Porto Alegre - RS - 2022
para cantar as notas
plano desviado em assobio
primeira lição
começar pela casa e pelo que dela se completa na escola. a tarefa para o lar, a ser feita na sala de aula, consiste em assumir o acento agudo que habita, simultaneamente, o professor e[‘] a pessoa. e com isso, evidenciar todas as faíscas que ocorrem a partir dessa junção - que borra limites entre domesticidade e instituição, intimidade e exibição - para que corpos não se choquem com colégios, nem sejam desmaterializados, despixealizados, descorporificados. eles falam pelas costas, nós sabemos por todos os lados. e tanta coisa a gente ensina, mesmo sem saber. aprendemos novas cartilhas. reaprendemos a ler para re-ensinar camaradas, guris e maricas. descobrimos um novo modo de alfabetizar. um outro jeito para oralizar. métodos sem métodos de vocalização. voz de pássaro-amora-formiga. voltamos ao começo. chegamos no quintal.
duetos, binômios e trabalho em grupo
é importante, então, assumir os grifos que se misturam aos escritos e dizer que outras vozes cantam junto. em uníssono. em dobra. em cânone. para além das coisas caídas em barros, das notas soadas em bell, destaco uma que me confunde num apartamento em urano: quem sou eu para querer cantar (a)preciado? canto baixinho, no sussurro interessado mais na potência que no poder; mais no micro que no macro. de um modo abrangente, percebo a vontade de levantar dúvidas sobre a veracidade e hegemonia dos arquivos e, num contexto específico, produzir contra-narrativas capazes de questionar modelos dominantes da escola. para isso, urge a necessidade de criar uma nova gramática que imagine outras formas de vida e dê novos nomes às coisas. que possa revelar mundos a partir das margens e que seja feita para e por nós, os caídos, crianças de asas quebradas, amantes do peito furado.
brincar-fingir
a escola de faz-de-conta se interessa pela potência criativa, imaginativa, lúdica e inventiva mas também em apontar um fingimento que há em potencial. olhar para os assuntos e sujeitos que são deixados de fora de um currículo hegemônico e, num tempero agridoce, convidar para ver de perto. ela se cria por acervo e experiência, na documentação marginal que se dá tanto no flagrante solitário quanto no fazer-estar com o outro. em passeio-prática, em corpo-carteira, em canto e pelos cantos. se encontra no desvio, instaurando possibilidades mais afirmativas para a invenção de existências próprias.
casa-oficina
se materializa meio água, meio terra. ao som do tico-tico. de gota que infiltra e inunda. se dá naquilo que acontece atrás. nasce a partir do chão. em plano baixo. assentada em barro. modelada pelo pé que dança e pelo sopro do vento nas folhas. é trazida nos balões que levam crianças em coro. nos ensina a passar a linha na agulha e entender o ritmo daquilo que se costura. o tecido da pele, das pessoas, da praça. reparar o pano de fundo. revelar feridas para delas bordarmos o baile dos pássaros que deslizam na borda de nossas bocas até tirar a última gota de sangue e com ela escrever nas paredes das casas e colégios o nome próprio das pessoas certas. quem escreveu. quem leu. quem sentenciou. quem silenciou. desvelar verdades enraizadas que dormem esquecidas. encontrar os cacos que formam um novo mundo. aprender com cada pista posta à prova. fabular para descobrir quem somos.
instaura-se uma atmosfera simultânea à realidade que nos coloca em contato com nossa natureza. canal aberto, exercício de revisão. de mãos dadas, somos todos educadores - adultos que brincam. alguém disposto a desaprender.
grade ou asas curriculares
1º ciclo
num quintal maior que o mundo
tudo é inventado
quando o mundo não parece seu
2º ciclo
edícula — encruzilhada
lugar em que se cultuam os deuses
lugar de encontro
3º ciclo
conduzir em estado de festa
[andar lento ainda é andar]
dançar não é andar
deslizar não é andar
voar não é andar
4º ciclo
a escola não está preparada para a criança preparada para os morcegos
para os caracóis
para o peixe preparado para ser pássaro
notas de um conselho de classe
reunidos ao fim de um ciclo
pensamos urgências de [des]construção
para fugir em fúria y esperança,
olhar pra trás e inventar outros futuros
responder presente
indica estar
revelar em meio a tantos
a tontura
em fila, círculo, sala
ouvir sua voz passar sua boca
entrar num outro corpo
e ser devolvida a você
em riso, dúvida, fala
— falo —
de quem brinca escondido
deita o lápis pelo olho
corre tinta sobre os lábios
sobe em saltos
assalta armários
da mãe, da irmã, da tia, da avó
daquele que cultua santo oco
ecoa o outro invés de si
e só atrás sustenta
e canta, mesmo que bemol
daquela que arranha a garganta
tosse, cospe, jorra
joga e é jogada fora
vermelho, rubi, roxo, púrpura
carne-súplica
espera-volta
daquilo que a gente começa de pequeno
num fundo de casa, num canto de escola, de um lado ou de outro do muro
alguém responde presente
alguém risca o giz no chão
firma o ponto
traça uma cartografia
parecem notas
os pássaros pousados nos fios da rua
ditam o canto de uma ópera de vozes miúdas
vozes pueris
vozes calejadas
agora somos heróis
sacis e rainhas
mateus-laudelina-cleópatra-carolina
nossos cavalos são de pau, pedra e pó
farpa, ferrugem e farrapo
e falam na língua que quiserem
outros juízes da realidade se avizinham
dançam junto
desejam conceber o inexistente
ajudar a olhar e ensinar o que viram
exame e conselho final
este é um momento único para que você sente nesta carteira, numa tarde de dezembro, quase quarenta graus lá fora e o sol a brilhar os reflexos de pó de giz que sujam o seu jaleco. em círculo, você vê a gota de suor que desliza dos rostos companheiros, pinga nos copos de café e umedece as bolachas. as pilhas de diários que não deveriam contar nada de íntimo, ressoam dentro da sua cabeça as vozes dos que caminharam ao seu lado e te viram envelhecer. são cadernos que trazem vestígios de terem ocupado a casa e a escola. de terem se chocado com as pessoas desses lugares. de terem sido o espaço em que você se fez perguntas quando pensava sobre como aprendeu a aprender. no canto da página, em caneta vermelha, você parece esboçar o que estampará algum teste. cruel de sua parte pedir que alguém de fora dessa sala se lembre da sua escola e tente responder:
1. quais as relações entre o conteúdo pedagógico e as interações entre professores, pais e alunos?
2. como aplicar às crianças códigos e éticas nos quais você não acredita e não aplicaria a si?
3. afinal, estamos a amplificar o código e a ética de quem?
Bruno Novaes
publicado na Revista Presente
2022
Os mundos das coisas e as coisas do mundo
por Fabiana Bruno
posfácio do livro Diário 366 - 2021
“Todas as imagens vão desaparecer”, escreve a escritora francesa Annie Ernaux em Os anos, uma autobiografia que mescla o registro pessoal à chamada grande História.
“...as imagens reais ou imaginárias, que permanecem conosco durante o sono
as imagens de um único instante tocadas por uma luz que só pertence a elas
Vão se acabar todas de uma só vez, assim como milhares de imagens que estavam na cabeça dos avós mortos há meio século e dos pais também mortos (...) E, um dia, nós estaremos na lembrança de nossos filhos no meio de netos e de gente que ainda não nasceu. Assim como o desejo sexual, a memória nunca se interrompe. Ela equipara mortos e vivos, pessoas reais e imaginárias, sonho e história (...)”.
Existir, dá relevo a autora, “é beber sem estar com sede.
o que você estava fazendo no dia 11 de setembro de 2001?”
Diário 366 é um projeto de criação artística e relacional que se consolida no abismo fascinante dos diários, das complexidades das produções autobiográficas e das interrogações sobre o fazer das histórias por apagamentos e desaparições. Não se trata apenas de um projeto pessoal, mas de uma mescla de como os dias de cada um de nós podem tocar uma certa história, que não é mais apenas a nossa.
O mecanismo do trabalho deste livro segue a montagem das respigas coletadas no dia-a-dia de um ano bissexto como um calendário-tabuleiro de coisas e dias. A criação de um diário por Bruno Novaes, quando lançada à deriva de convites distribuídos via rede social, transgride as imagens de um diário pessoal, acumulando outras espessuras a um acervo de experiências sobre os dias de muitos outros participantes.
Em Diário 366 somos lembrados de que inventamos não apenas pessoalmente, mas coletivamente, os dias em nossa vida. Sobretudo, somos instigados a olhar sobre os dias que falham, desaparecem das páginas e do calendário, e que, portanto, parecem ter deixado de existir na nossa história como história. Dias vazios.
Então, a que se destinaria um diário que dá relevo aos dias vazios? Diário 366, que tem efetivamente um dia que nem sempre existirá nos calendários gregorianos, o 29 de fevereiro, se aproxima mais de um quase-diário. Bruno Novaes se ocupou de colecionar coisas, textos, cartas, imagens ao longo de 366 dias, mas preencheu o gride desse calendário com 86 vazios e 37 extravios. Cento e vinte três dias não ocupados por coisas e imagens nos perturbam como faltas e incompletudes ao mesmo tempo que abrem espaço, deixam brechas, para desejar e imaginar. Lá onde há falhas, há espaço para a invenção.
O trabalho artístico apodera-se dessas lacunas dos dias vazios e dos extravios das coisas como potências de um devir. Escancara carimbos e marcações gráficas para essas ausências presentes como territórios desejosos e convites para imaginar. Dias vazios, o que existencialmente eles podem ser? Dias vazios, o que eles podem ser para a história?
Os resultados poéticos dos vazios e extravios de Diário 366 espraiados nas páginas deste livro-quase-diário entrelaçam-se às heranças de 243 coisas-migrantes chegadas com “sucesso” dessas coletas, pós envios postais, confiados ao método da deriva. As 243 coisas recebidas na troca dos postais – e que um dia foram páginas de um diário pessoal – mostram-se como um “pequeno arquivo coletivo de coisas e dias ordinários”. Objetos que viajaram, migraram e insistiram nesse deslocamento espacial e temporal perpassam de uma vida, daquilo que foram um dia, para se tornarem outras coisas emergentes, pulsantes e carregadas de desejos e memórias.
As coletas dispostas nas páginas desse livro, no calendário ou ainda na mesa de montagem da exposição, nos remetem a outros projetos admiráveis como o Museu da Inocência, idealizado pelo escritor turco Orhan Pamuk, que não apenas rendeu uma fabulosa catalogação não-classificatória, mas fez nascer potências narrativas na forma de romance escrito para o seu livro homônimo ao projeto do museu.
É assim também que a força poética e estética de Diário 366 desdobra-se em outras potências imaginativas. Os silêncios das coisas rompidos pelas fabulações que passamos a construir de um quadro a outro do calendário, de uma página a outra deste livro, transbordam os dias meramente ordinários e impulsionam enredos, vidas e histórias. Fazem dobrar dias esquecidos em abismos de memórias. Fazem dobrar dias em imagens, que como tais desaparecerão, restando sopros de desejos e reaparições
São Paulo, 02/03/2021, 23h52
prefácio para o livro Diário 366
por Julia Lima
Hoje acordei cansada. Passeei com o Ziggy, que não come direito há uns dias mas roeu alguns dos meus livros mais queridos. O bom é que não consigo ficar brava com aquela carinha. De volta em casa, percebi o quanto ando desorganizada - preciso ter mais disciplina! Sem muita comida na geladeira, pulei o café da manhã, como tenho feito ultimamente. O engraçado é que eu sinto falta, mas não sei muito como resolver esse dilema. Fiz análise no meio do dia, e chorei pela angústia e medo de não dar conta de tudo. Às vezes a gente fica inundada e afogada pela vida. De tarde, dormi um pouco, acho que meu corpo estava pedindo. Trabalhei algumas horas, já que ontem comecei um novo trabalho e preciso dividir bem o dia. Desconfio que vai demorar umas semanas para me acostumar ao ritmo mais fixo e estável de um emprego. Depois, sentei pra terminar o prefácio do “Diário 366”, mas não consegui, porque sabia que logo ia dar aula, e minha cabeça estava dividida. Aliás, as aulas de terça me alimentam demais e me dão um propósito imenso na vida. É precioso perceber que às vezes sou capaz de dizer coisas que ajudam outras pessoas, que despertam um insight ou reverberam de maneira positiva. Terminei o dia ainda cansada, mas mais feliz. Sentei pra comer, pra ver um reality na tv e, de novo, para terminar o texto. Percebi que nunca escrevi numa página de diário, acho que não via muita lógica em escrever pra ninguém ler. Mas, quem sabe, não é esse um começo?
A cada ano, calendários, diários e agendas tem as suas páginas preenchidas ao longo dos meses, com registros e documentações dos dias. Os diários, mais especificamente, são retratos não só dos fatos banais ocorridos ao longo das horas acordadas, ou dos sonhos da noite anterior – e dos ocasionais eventos excepcionais –, mas também fiéis depositários de profundas confissões, afetos e angústias, das impressões e dos desejos íntimos de alguém. Cada entrada configura um relato híbrido entre fato e percepção, veracidade e ficção, revelando de maneira premente (e não-mediada) o ponto de vista do autor. Sua natureza intimista, confessional, e até sigilosa, é também talvez um pouco narcisista, estruturando-se em primeira pessoa; sua linguagem principal é a escrita; e sua fruição é, quase sempre, destinada apenas a quem o escreve – uma narrativa sem filtro e sem necessidade de edição, aproximada da carne da vivência individual. É, ao mesmo tempo, a materialização de muitas vozes internas que, em público, silenciamos em favor da boa convivência, da civilidade e da educação, mas que podem ser livremente derramadas no papel sem medo das contradições, incoerências e, quiçá, ilusões inerentes à perspectiva singular. Assim, ler um diário alheio pode ser o mais próximo que podemos ter de ver o mundo pelos olhos de outra pessoa.
No ano bissexto de 2016, Bruno Novaes se propôs a construir um diário à sua maneira, registrando todos os dias a data corrente por meio de desenhos, aquarelas, fotografias, colagens, costuras ou intervenções que experimentassem com o formato e o papel. Fugindo da convencional escrita confessional, realizou um exercício poético-simbólico de anotação diurnal por meio da imagem. Esse exercício estava ancorado no desejo de explorar noções e interpretação do diário como ferramenta do conhecimento de si (e, mais tarde, do outro), para além das entradas narrativas. Ao concluir esse processo, o artista digitalizou e transformou todas as páginas produzidas em cartões postais, imprimindo-os para formar uma coleção de 366 fichas diferentes.
Essa operação configurou-se como uma primeira subversão: Novaes converteu seu diário pessoal em algo cuja função primordial é circular abertamente entre pessoas, alterando definitivamente o modelo do diário comum. Mesmo que o postal se preste à escrita, não estamos mais lidando com uma esfera confidencial, e sim com algo que se presta à comunicação pública. Levando precisamente em conta essa condição dialógica do material, o artista, então, passou os quatro anos seguintes (entre 2017 e 2020) realizando um extenso processo de trocas e construção coletiva que perverteu ainda mais o intimismo e o sigilo em favor de uma dimensão compartilhada. Pela internet, anunciava regularmente uma oferta de escambo: quem quisesse participar do projeto, escolhia uma data que lhe fosse cara. Se disponível, o interlocutor receberia pelo correio o postal referente àquela data, sem saber o conteúdo da imagem – e sob a condição de que uma vez que recebesse o cartão, enviaria de volta uma resposta relativa à escolha daquele dia.
Os participantes, movidos por associações afetivas, por feriados e datas comemorativas, por eventos políticos relevantes ou predileções aleatórias, passaram a compor uma rede pública de transações íntimas, uma cadeia ampla e espontânea de confidências entre conhecidos e desconhecidos. As respostas chegaram nos mais variados formatos: centenas de textos, cartas, bilhetes, fotografias, desenhos, objetos e peças foram sendo devolvidos ao longos dos anos até o final de 2020 (também bissexto), quando as trocas se encerraram.
Com todo este acervo acumulado, a última etapa do projeto consistiu na edição desta publicação, que não apenas conta uma versão da história dos 366 dias que formaram o ano de 2016, mas também retrata, de alguma forma, incontáveis dias, meses e anos por meio de todas e todos que se dispuseram a participar desse intercâmbio. Juntos, cada um dos destinatários desses postais tornaram-se guardiões coletivos do diário de Bruno Novaes. Depois de espalharem-se pelas mãos de muitas pessoas e por muitos lugares, as páginas do “Diário 366” agora se reencontram e se reúnem aqui, em um formato que as aproxima de sua forma original. Mas, mais do que isso, dispostas lado a lado com os retornos (e extravios, silêncios e ausências), constituem uma versão dupla e ampliada do diário, reencarnado neste livro.
Modos de contar o tempo
por Julia Lima para a exposição Diário 366 - 2021
A cada ano, calendários, diários e agendas tem as suas páginas preenchidas com registros e documentações dos dias. Os diários, mais especificamente, são retratos não só dos fatos banais – e dos ocasionais eventos excepcionais –, mas também fiéis depositários de profundas confissões, afetos e angústias, das impressões e dos desejos íntimos de alguém. Cada entrada configura um relato híbrido entre fato e percepção, veracidade e ficção, revelando de maneira premente (e não-mediada) o ponto de vista do autor. Sua natureza intimista, confessional, e até sigilosa, talvez seja também um pouco narcisista, já que estrutura-se em primeira pessoa; sua linguagem principal é a escrita; e sua fruição é, quase sempre, destinada apenas a quem o escreve – uma narrativa sem filtro e sem necessidade de edição, aproximada da carne da vivência individual. É, ao mesmo tempo, a materialização de muitas vozes internas que, em público, silenciamos em favor da boa convivência, da civilidade e da educação, mas que podem ser livremente derramadas no papel sem medo das contradições, incoerências e, quiçá, ilusões inerentes à perspectiva de ponto singular. Assim, ler um diário alheio pode ser o mais próximo que podemos chegar de ver o mundo pelos olhos de outra pessoa.
No ano bissexto de 2016, Bruno Novaes se propôs a construir um diário à sua maneira, registrando diariamente a data corrente por meio de desenhos, aquarelas, fotografias, colagens, costuras ou intervenções que experimentassem com o formato e o papel. Fugindo da convencional escrita confessional, realizou um exercício poético-simbólico de anotação diurnal por meio de imagens, explorando noções e interpretações ampliadas do diário como ferramenta do conhecimento de si (e, mais tarde, do outro). Ao concluir esse processo, digitalizou todas as páginas produzidas e transformou-as em cartões postais impressos – uma coleção de 366 fichas diferentes. Essa operação configurou-se como uma primeira subversão: o artista converteu seu diário pessoal em algo cuja função primordial é circular abertamente entre pessoas. Mesmo que o postal se preste também à escrita, não estamos mais lidando com uma esfera confidencial, e sim uma dimensão pública – sem envelopes, postais circulam sendo lidos livremente por qualquer um que os manipule.
É a partir dessa condição dialógica do material postal que Novaes, então, passou a realizar um extenso processo de trocas e construção coletiva que perverteu ainda mais o intimismo e o sigilo em favor de uma esfera compartilhada. Durante os quatro anos seguintes (entre 2017 e 2020), pela internet, operou uma espécie de escambo: quem desejasse participar do projeto, elegia uma data e, se disponível, recebia pelo correio o postal referente àquele dia, sem saber o conteúdo da imagem. Em troca, uma vez que recebesse o cartão, enviava de volta uma resposta relativa à sua escolha. Movidos por associações afetivas, por feriados e datas comemorativas, por eventos políticos relevantes ou predileções aleatórias, os participantes passaram a integrar uma rede pública de transações íntimas, uma cadeia ampla e espontânea de confidências entre conhecidos e desconhecidos. As respostas vieram nos mais variados formatos: centenas de textos, cartas, bilhetes, fotografias, desenhos, objetos e peças foram remetidos ao artista até o final de 2020 (também bissexto), quando as trocas se encerraram.
Com todo este acervo acumulado, a última etapa do projeto consistiu na organização desta exposição na qual se exibem todas as páginas originais do diário, dispostas a formar um grande calendário, junto de todas as devolutivas de quem se envolveu nesse intercâmbio. Incidentalmente, porém, a mostra também foi ressignificada ao ser realizada hoje, em meio à pandemia, depois de mais de um ano de vais-e-vens de isolamento, restrição e quarentena, que mudaram tanto a nossa relação com o calendário. De um ano para cá, os dias e as horas parecem-se uns com os outros, sempre os mesmos, enquanto também passam demasiadamente acelerados, e o tempo nos escapa.
Assim, abrem-se aqui todas páginas do que um dia foi o ano de 2016 na vida de Bruno Novaes, agora acompanhadas por este acervo coletivo construído por muitas pessoas, muitas histórias e muitos lugares. O conjunto se apresenta como uma versão dupla e ampliada do diário, contando a história de um passado ano de um dia a mais, em um ano no qual os dias parecem não passar.
escola de brincar
Bruno Novaes
publicado no livro O jogo que continuamos a brincar, mesmo depois de grande, é a brincadeira do esconde-esconde
Victor Santos - editora Hecatombe - 2021
"Quando Eros está presente no contexto da sala de aula, então o amor está destinado a florescer. Persistentes distinções entre o público e o privado fazem-nos acreditar que o amor não tem lugar na sala de aula. Para restaurar a paixão pela sala de aula ou para estimulá-la na sala de aula, onde ela nunca esteve, nós professores e professoras, devemos descobrir novamente o lugar de Eros dentro de nós próprios e juntos permitir que a mente e o corpo sintam e conheçam o desejo."
[eros, erotismo e processo pedagógico - bell hooks]
Desde que suas perguntas me chegaram, junto aos textos que constroem esse livro, fui profundamente tocado pela noção de sobreviver ao inferno escolar, brincando - antes, durante e depois - de esconde-esconde. Me lembro de brincar com os adolescentes que o melhor do ensino médio era poder sair dele. Passar pela escola, mais de uma década, a espera do fim. Isso agora me chega como mais um modo de camuflagem passiva. De parecer não se afetar e não se relacionar com o outro, com a escola, com o que nela nos acontece. Como se apenas precisasse esperar que aqueles longos anos acabassem, para que aí sim, pudesse começar a viver. Ser alguém na vida. Mas então me lembro que, mesmo fora dos muros, depois do curso, continuamos fora de foco, pelos cantos. Desculpe não responder suas perguntas seguindo a entrevista que você propôs, nem como respostas grafadas por extenso, em tinta azul, numa prova. Vou tentar organizá-las e depois sentir o que delas toma o meu corpo para formar o corpo desse texto. São muitas memórias, histórias e depoimentos que poderiam fazer parte de tudo isso. Vamos ver o que parece ser mais pulsante.
inventar mundos quando o mundo não parece seu
Temos ouvido e repetido sobre a reinvenção de um mundo. Sobre o outro. Sobre o eu. Sobre modos de existir divergentes. Crescemos em meio a um mundo cis-heteronormativo que, em alguma instância, nos faz imitar seus padrões e, por outras vezes, inventar nossas existências. Lembro do primário, na sala da quarta série, onde tinham dois Brunos. Um deles era mais efeminado e fazia com que, no fundo, o mais discreto sentisse alívio por não ser ele o motivo de gozação dos meninos. Havia ali um escudo. Uma frágil proteção. Barreira que era corpo. Era alguém. Nunca pensei sobre ele. Nunca me coloquei em seu lugar. Não me ensinaram isso. Preferia passar despercebido. Camuflado. Aprender, forçosamente, as palavras e os gestos que nos distanciassem. Não era possível deslizar em público. Esse lugar escorregadio era privado. Fundo da casa - quarto de brincar. Espaço de fantasiar realidades e poder estar mais perto de você, quando se está sozinho num mundo.
o encantador de alunos
Consigo me lembrar o quanto o seu jeito me incomodava. Me perguntava se os outros alunos também suspeitavam de você. É engraçado como eu duvidava da minha própria sexualidade, e suponho eu, como não conhecia ninguém que fugisse do estereótipo heteronormativo, tive essa reação. O tempo passou, e conviver e amar a sua pessoa me possibilitou conviver e amar a mim mesmo. Hoje olho pra você, pro jeito como se veste e corta o cabelo, leva a vida e coloca arte em tudo que toca, e me inspiro. Você é muito mais que um professor pra mim.
[trechos de uma carta para um professor canceriano - P.P.]
Percebo que muito disso ressoou em mim. Em algum lugar de dentro. Naquela criança que me habita. Na lembrança ginasial do professor gay de Inglês, espelho negado. Na memória daquela pessoa mais velha, de rosto e gênero indefinidos, do almoxarifado. A adolescência trincou cascas e a entrada na vida adulta se deu de asas semi-abertas. Pra fora do armário, ainda de camisa polo e calça cáqui, voltei à escola. E, com o passar dos anos acenderam-se faíscas no embate entre aquele espaço e um corpo que se descobria existir fora dele. Não sei precisar qual identidade foi mais responsável por me fazer perguntas durante os anos em que a escola me acordou - professor-artista-criança-pessoa-gay - O que fiz e o que não pude fazer para esses alunos? Onde me via e me reconhecia neles? O que repetia, perversamente, sem perceber? E como, percebendo, poderia mudar? Foram milhares de crianças e adolescentes com quem estabeleci diferentes relações ao longo do percurso. Não consigo falar de todos eles. Lembro de muitas histórias, apesar de me fugirem os nomes. Elejo então aquela turma - grupo de adolescentes de salas e anos distintos. Uma turma que continua a existir como ficção e narrativa em mim. Escolho falar dela porque sei que nos estudamos para além do desenho. Em traço e gesto, o corpo se fez presente. Mesmo numa escola que desassocia corpo e mente. Que considera o corpo, apagado - vestígio de corpo docente. Pude ser inteiro e fazê-los se descobrirem inteiros também. Quebrar as janelas das salas, deu a ver vizinhanças. Respeitá-las pelo convívio. Reconhecer o outro. Enxergar e ser enxergado. Permitir se permitir. Para além de luz e sombra, um jeito de olhar des-opaco. Para além de retas e pontos de fuga, um caminho torto que foge à regra. Para além de movimentos, ismos e esmos, um jeito ermo de ser que pode ter feito o amor florescido. E sim, a grande maioria é hétero - ou pelo menos exercita assim sua sexualidade. Não é sobre isso. Nunca foi. Nem precisaria ser. Parto de um desejo de voar. Não me ensinaram isso. E eu sei que também nunca precisei professar isso a ninguém. Mas tem coisas que a gente ensina, mesmo sem saber.
corpo decente
É Novembro de 2017. Uma roda de conversas. Aqueles jovens sairão da escola em poucos dias. Passarão a viver com ela, do lado de fora. Muitas perguntas precisam ser respondidas. Eles parecem ter ânsia de ouvir, pela voz que escapa, as respostas precisas. As palavras corretas. Eu as falo. Talvez, pela primeira vez. A escola está em suspensão. São os últimos dias de recuperação. Notas a serem fechadas. As pessoas parecem esperar o momento certo de agir para cada coisa que precisa ser ajustada. A-jus-tes. Um que desencadeia o outro. O próximo, sou eu. Cinco de Dezembro. O jogo da vez é o jogo dos erros. De um lado não serão mais utilizados seus serviços pela nossa empresa. Do avesso, doutrinar e aliciar crianças - uma realidade inapropriada. Saio sob uma chuva de pétalas e pedras. Não havia nada, pedagogicamente, que pudesse me tirar dali. Havia um corpo existindo fora e que se corporificou demais do lado de dentro. Era como se metade de mim fosse digna de aplausos e a outra parte não tivesse alguma dignidade. Passo a ouvir histórias de outras pessoas desajustadas. Relatos docentes que compõem um Corpo decente - corporificado em cinquenta minutos de voz e centenas de quilos de giz. Corpos que se chocaram com escolas. Desmaterializados, descorporificados, despixealizados. Valorizam nossa mente como se esta estivesse separada do corpo. Como se não aprendêssemos com todo ele. Como se não existíssemos em sua totalidade. Falam pelas costas. Sabemos por todos os lados.
brincar de escola, brincar na escola
Volto àquele quarto de brincar - fundo de casa. Brincar na escola foi um procedimento que me acompanhou em diferentes instituições por onde pude escorrer e até escorregar. Penso o brincar como instauração de uma atmosfera simultânea à realidade, que extrapola idades. Como aquilo que nos coloca em contato com nossa natureza. Pode ser uma herança vinda da criança, que fabula e imagina. Um canal aberto, um exercício de revê-la e poder fazer justiça. Mas para isso, é preciso também, do outro lado, a consciência do educador - adulto que brinca. Alguém disposto a desaprender. Inclusive que não se espera dele, brincar. Criança-professor. Esses tempos sobrepostos conviveram comigo e é certo que ainda convivem. Acho que só quem entrou numa escola depois de crescido sabe o que é isso que estou falando. E como, mesmo fora dela, ela continua dentro. É uma dessas coisas que nos começam de pequeno. Sim, muita coisa a gente começa de pequeno. Sentir diferente um amigo. Perceber que não é permitido fazer isso. Tentar esconder. Descobrir que há regras para os sentimentos. E tentativas de controle sobre nossos corpos e nossos desejos. Desejo poder distorcer certas cartilhas aprendidas. Inscrever contranarrativas em novos materiais para novos tempos. Abrir fendas e iluminar as subjetividades ocultas do currículo, as coisinhas dos cantos, as relações e aprendizados que ressoam para além-muro. Da gente que margeia o padrão. Aliás, transtornar padrões. Fabular futuros possíveis quando o que se apresenta parece não ter futuro. Acho que isso se assemelha, em certa medida, ao processo de brincar. Reagir a incompletude. Ampliar o mundo. O jogo como organização de experiências em estratégias que provoquem um riso torto. Procuro aprender novos modos de fazer. Seja sozinho ou em grupo, brincar se dá na relação com um outro. Num fundo de casa, num canto de escola, de um lado ou de outro do muro. Fora de armários, poder cantar em silêncio-eloquente.
Character education
Adam Zucker - Artfully learning - mar2021
A popular saying is that the best laid-plans often go awry. Despite how carefully we plan for something, there are things both apparent and unforeseen that could still go wrong. This is absolutely true within the educational sphere where teachable moments, flexible purposing and adaptability (see: Eisner, 2004) are essential modes of operation.
Educators rarely go into their classroom with a fixed script. They know that using a finite method to direct their students’ course of learning is generally inadequate and counterproductive. This is because education is not a one-size fits all endeavor. Unfortunately, the willingness and understanding possessed by teachers, which reflects best practices and experiences in pedagogy and a passion for supporting students’ social and emotional growth, is sometimes obstructed by forces outside of schools. The overarching influence of bureaucratic commonization and standardization of curricula has stifled the creativity, criticality and morality of educators, students and school administrators (see: Ravitch, 2013; Vilson, 2013 and Greene, 2014).
One major outcome of educational bureaucracy is social conformity (see: Mohammadi, 2000). The desire to mold and maintain social norms is a catalyst for the implementation of pedagogical standards, such as the common core curriculum and stringent instructional and cultural hierarchies. Under this system, measuring predetermined proficiency and meeting performative standards matter more than developing and nurturing diverse perspectives, democratized collaborations and critical thinking. Social conformity affects educational indicators, such as what is deemed necessary to teach and how students should behave, by focusing on subject matter, character values and morality that are desired within the status quo. This can implicitly neglect or explicitly dissuade students’ autonomous expressions of cultural intersectionality and the fluidity of gender (see: Alber, 2017 and Chidi Nduagbo, 2020).
Measuring students by test scores and adhering to sociocultural and political norms instead of honoring and exploring their humanity and ingenuity is a sure sign of our collective moral depravity. In the article, “Bureaucracy and Education: An Examination of the Foundation and the Impacts of Bureaucracy on the Purpose of Twentieth Century Education,” Mohammadi (2000) states that “The bureaucratic method of school management has had a dichotomous effect on the purpose of schooling. In the late nineteenth century, the system performed its tasks flawlessly. It promoted social conformity in an increasingly complex society. Bureaucracy was an excellent method of organization. However, these same qualities have had detrimental effects in the twentieth century. The time for social conformity has long passed. In the innovative world of the twentieth century, there is little room for conformity.”
While there are good pedagogical methods that focus on social and emotional learning and educating the whole child (see: Noddings, 2015) already being employed; the application of these practices can fall prey to the aforementioned desire to uphold the status quo and shape social, cultural and emotional behaviors that are inline with a governing or administrative body’s idealistic political and economic aims.
The fallacies, failures, trials and tribulations of educational indicators and social and academic benchmarks, influence the content of Bruno Novaes‘ multidisciplinary and experiential artworks, which depict a physical and metaphysical structure that he calls “character education.” Novaes is an artist and educator from Brazil. His background teaching adolescents in formal education settings inform his critical body of work, addressing what he describes as “a hidden curriculum that points to what we have learned, discovered and invented and that hegemony cannot handle.
Novaes’ conceptualization of character education envisions a kind of school whose mission is to focus on students’ academic proficiency within the curriculum, while also developing their moral outlook. Material depictions of this school and its pedagogy are drawn from his own educational experiences (as both a student and a teacher), pedagogical philosophies and his imagination. Novaes’ artwork reflects ideas and aesthetics of contemporary schooling through a series of experiential activities and objects presented in ways that resemble familiar educational environments and teaching methodologies.
Teaching staff’s conduct manual (2018) is an installation that addresses the idealism of academic and social performance. It includes an edited compilation of rules that are sourced from conduct regulation documents, which are given to teachers upon employment and at the beginning of each school year. Novaes published these rules as a re-presented guidebook and distributes free copies whenever the work is exhibited. Novaes accompanies the publication with ten ink drawings depicting a school environment that is informed by the standards and codes described within the guidebook.
The idea of trying to make each student’s lives more fulfilling and productive is obviously great in theory, but sometimes in practice it can ignore the crux of why these students are feeling downtrodden. To address this, educators must have ample time and the means to get to know their students. Professor of education, Rebecca Alber (2018), argues that a “rigid, standardized approach to teaching contradicts so much of what we know from whole-child education research. It can sabotage the humanness of all those beings growing and exploring daily together in one room.”
Each student brings a complexity of identity, social and academic behaviors into the school environment. Education should be an engaging process, where students have agency in creatively constructing information from lessons in accordance with personal collective experiences that have relevance in their lives. A way of achieving this is to set up pragmatic situations where students can partake in real world problem solving with their peers and eventually become self-directed learners. The teacher’s role is as a facilitator and a motivator. They set up situations for students to explore and express interests and issues, develop a thirst for acquiring knowledge and partake in transformative actions. The same is true of the socially engaged artist’s responsibility. It is important that the teacher and the artist leave ample room for their students or viewers to approach a lesson or work of art in an interpretative manner and feel empowered and emboldened to respond on their own terms.
Of course, the aforementioned principles are easier said than done. Human beings are very impressionable, which is evident from the plethora of media platforms and social networking sites that peddle false information, conspiracy theories and hateful rhetoric. Attempts toward indoctrination are unfortunately present within the educational realm and can include the refusal to teach evolutionary science, acknowledge students by their preferred pronouns, honor their civil rights and respect their boundaries and consent.
Addressing social inequity and resisting instructional dogmatism is where Novaes’ progressive educational derived work shines. Novaes is critical of trickle down approaches to teaching and learning. He has witnessed how good academic and ethical intentions were implemented in a manner that felt militaristic and pedantic. Through imparting standardized academic and social codes, a hegemony is established with students at the bottom. This unyielding procedure focuses on common sociocultural and emotional benchmarks instead of the humanity and everyday issues of the students, and can be a significant roadblock in their development and exploration of identity (see: Del Carmen Salazar, 2013).
Novaes’ art posits that inherent nature and experiential nurture work in tandem with regards to acquiring and communicating knowledge. We have certain imbued characteristics that are true to ourselves, and other forms of social, emotional and cognitive behaviors that we develop through experience and educational frameworks. The metaphor of the tabula rasa (blank slate) is a recurring theme in his participatory installations, such as Empty class (2018). The work of art consists of a pile of white chalk arranged on the floor in a towering mound. The pieces of chalk are supported by a blank blackboard. In Open draw (2020), blackboards, chalk and educational toys are transported outside of the classroom and installed in a public space. The installation utilizes interactive learning modules in an atypical space that is more indicative of a playground than a school. In each of these experiential works of art, Novaes gives viewers a chance to express themselves by making marks with the chalk, which become instant and informal conversations. The marks that are left, reworked and erased by various participants over time, suggest a sense of collaboration and inform others about the intersectional identities and dynamic culture of the surrounding locality. The crux of these works is that education can transpire anywhere, and profound learning happens when it is encouraged to occur organically and communally.
Brazilian educator, activist and philosopher, Paulo Freire developed a methodology that sought to make social and pedagogical relationships in schools and communities more democratic, socially engaged and emotionally empowering. His theory of problem-posing education, which he coined in his 1970 book Pedagogy of the Oppressed, opposes the idea and practice of teachers being the be-all and end-all of knowledge transmission within the educational system. Students are not blank slates or banks to be filled with information that only the teacher or curricula designers believe to be important. Problem-posing education is in stark contrast to the banking model of teaching, another term coined by Freire (1970), which he described: “Instead of communicating, the teacher issues communiqués and makes deposits which the students patiently receive, memorize, and repeat. This is the ‘banking’ concept of education, in which the scope of action allowed to students extends only as far as receiving, filing and storing the deposits.”
In a problem-posing model of education, knowledge is constructed through socially engaged conversations and actions between the teacher and the students. The classroom hierarchy is shattered when both students and educators listen, learn and collaborate together to address issues that are affecting their individual and collective experiences.
Novaes’ pedagogically infused artwork reflects Freire’s drive for epistemological equality and equity. This is evident in the collaborative mural-like work, Observation draw as an intervention (2018). The cultural organization, SESC São Caetano, invited Novaes to create a work of art for their art and technology site. He proposed that any work of art within the shared space should reflect the people who utilize it on a daily basis. During site-specific workshops (one for adults and another for children) Novaes and the participants made observational drawings of objects that were found within the community center. During the final meetings the collective arranged the drawings on the walls, creating an aesthetic conversation about the physicality and essence of the space, as well as the interests, vision and democratic impetus to depict shared experiences and memories. The drawings are simultaneously a unified portrait and still life, which function as a living legacy that meaningfully and critically embodies communal spirit.
Another collaborative project that reflects individual and community expression is How do you want to be remembered? (2017). Novaes developed this work of art with students who were in their final year of high school. After an in-class discussion about memory and identity, the students were presented with blank administrative cards (known as remissive forms) that are traditionally used by the school secretary to create a database of graduating students (a record of names, registration numbers and dates of birth). Once they had the cards, Novaes made a variety of art materials available and prompted the students to respond to the question “how do you want to be remembered?” These cards, which are usually marked with quantitative data became open-ended substrates for the students to symbolically represent their personas and react to their current and prior school experiences. Many of the students critically examined and commented on being identified via a numerical system (their student registration numbers), while others addressed standardized examinations and other formal assessments. As a series of works, the cards exhibit a student-centered revision and diversion of social conformity and impersonalization within a bureaucratic educational institution.
As previously mentioned, one of the more glaring issues in education as a product of social conformity, is gender inequality. There are schools throughout the world that refuse to accept that there is a spectrum of gender identities, which can not be defined as exclusively masculine or feminine. These schools uphold gender roles, which are shattering to students’ social and academic well-being. Even if schools do accept the truth about the intersectionality of gender, there is a shortage of pedagogical materials and training that reflects a fundamental understanding and portrayal of gender’s fluid nature (see: Alber, 2017; Chidi Nduagbo, 2020; and Rafferty, 2018). Traditional learning materials such as anatomy and biology charts, diagrams and texts, often adhere to and highlight gender disparities by focusing on standardized depictions of gender binarism. Several of Novaes’ artworks call out gender inequality by critically depicting the discriminatory normative imagery and vocabulary that is prevalent in educational curricula. His Spelling book (2017-2019) series presents drawings of school objects accompanied by phonetically written words that are commonly used to insult and harass LGBTQ individuals. Sciences book: basic education re-presents anatomical diagrams in a manner that is inclusive of transgender and non-binary representations.
Because we are in school during the formative periods of our development, schools are settings for a great deal of our most profound social, emotional and epistemological moments. Therefore, it is essential for schools to foster an inclusive environment for both academic and sociocultural development and understanding. An ideal character education cannot be defined or enforced, because it must allow for the complexity and fluidity of those who teach and learn in classrooms throughout the world. Novaes’ fictional school environment implores us to realize the problems our schools face and consider the possibilities for collaboratively creating an equal, equitable and social justice centered educational system. Hopefully life can imitate art.
Intervalo
por Diran Castro
30º Programa de exposições do Centro Cultural São Paulo
Bruno Novaes parte da inserção e observação das relações que se dão no espaço escolar. Tensiona as práticas de artista e educador e constrói materiais e documentos que reapresentam narrativas que se chocam e se confundem entre ficção e realidade. Deste modo, imagina o corpo de trabalho como o acervo de uma escola de faz-de-conta. Diários de classe, manuais de conduta, conversas de corredor se misturam aos móveis, corpos, notas e memórias. Brincar de escola. Brincar na escola. É neste processo que vem produzindo e pesquisando.
No pátio do CCSP, instala-se uma lousa pivotante dupla face, que convida o público a escrever, desenhar e comunicar. Porém cria certa impossibilidade caso não tenha outro participante do outro lado. Assim, o trabalho acontece a partir do encontro entre duas pessoas que estão circulando pelo espaço expositivo e que podem ou não se conhecer. Como num recreio, esse lugar é norteado pelas ideias de ação e de pausa. Como ação é o exercício do acordo silencioso entre as partes que se relacionam por cada uma das faces da lousa. Ponto de contato e imaginação, que ultrapassa o quadro e o giz e envolve a tensão entre os corpos. Como pausa, é um demorar-se lúdico na força que reside no jogo. Um tempo de brincadeira, que se suspende e caminha contra a velocidade da sociedade de desempenho atual, que nega tudo o que é vinculativo.
O intervalo pode ser onde os alunos experimentam seu tempo e afeto - longe de hostilidades da sala de aula. Deslocado para fora dos muros da escola, acaba por iluminar os aprendizados de um currículo oculto, tirando-os de áreas opacas. Assim, repensa a própria escola e o ambiente escolar. Neste lugar do jogo e da brincadeira, como aprender consigo e com o outro? Será imprescindível estar em apenas um dos lados do muro? bell hooks, no livro “ENSINANDO A TRANSGREDIR A EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA DA LIBERDADE”, descreve, no modo de um diário epistêmico, a escola como lugar de liberdade. Partindo do princípio de direitos de construção democrática e espaço de inteligências plurais, entendendo a escola como o lugar de encontros e construção de ferramentas políticas. (Como as escolas poderiam então valorizar homens e mulheres cujos valores a sociedade despreza ativamente? questionamento que o escritor TA-NEHISI COETES faz no livro “ENTRE O MUNDO E EU”). O ambiente escolar talvez seja mais um código de conduta de embranquecimento estético e epistêmico, que afeta decisivamente os corpos das crianças e adolescentes. E por quem ele foi pensado? Para quem e para quê? Quem escreve os seus manuais e códigos? Que imagens ilustram suas cartilhas? Que histórias escolhem contar ou não? Conhecer ou ignorar. Sucumbir ou imaginar. Nas palavras de Virgínia Woolf: o que é a realidade e quem são os seus juízes?
Acreditando no ato de acreditar é que inventamos novos horizontes utópicos. Espaços habitados por uma imaginação política para fabularmos outros presentes e futuros. Uma fresta se abre e é preciso cada vez mais perceber o outro pelas suas diferenças. Sem diálogo, a escola se fecha. De um dos lados do muro, Bruno nota talvez uma garantia de mudança ao ver uma nova geração de alunos se movimentando de forma diferente da qual o mesmo experimentou quando jovem. Do outro lado, há provas para que ele desconfie de si. Como garantir uma educação justa e igualitária quando determinados corpos já nascem suspeitos, acusados e condenados? Seja pela experiência ou pela fantasia, intervalo ergue aqui uma parede, abre uma trincheira, se instala entre duas pessoas, mas não nega nenhum dos dois lados. Deles depende em acordo mútuo. Em equilíbrio. Como duas partes de uma mesma realidade. Assim, também aconteceu o processo de escrita desse texto. Em um convite como experiência. Construído, peça a peça, por quatro mãos e duas cabeças - de corpos e histórias distintas.
Ao ter acesso a obra “INTERVALO” que será exposta no CCSP, achei interessante pensando na proposta da obra, de convidar o ARTISTA Bruno Novaes a escrever juntxs o texto. Portanto, o texto pensado juntxs é o texto em negrito. Onde o pensamento em conjunto é atravessado em ideias e afetos distintos, como o ambiente escolar, principalmente no momento de intervalo.
Fico pensando nas palavras que eu e BRUNO, ou que cada um escolhe para compor o texto em negrito, talvez o ambiente escolar ainda para pessoas brancas é o lugar de fuga e usa palavras como utopia ou fábula, para pensar outros afetos ou futuros.
No meu caso, em primeira pessoa, a escola como vivência, não pude fabular ou talvez ter esse momento branco cis, de dialogar ou fantasiar.
Compartilho muito de uma passagem do livro “ENTRE O MUNDO E EU” do escritor TANEHISI COETES, onde o mesmo descreve o pensamento ou a escrita branca como, `descobri que palavras vagas e inúteis não estavam separadas de pensamentos vagos e inúteis`. pag 59.
O texto em negrito, como a lousa que será esse lugar de encontro, com a obra “INTERVALO”, sujeitxs estarão dispostos a compartilhar cada um de um lado da lousa trazendo seus afetos. Como seria após o ativamente da obra, mudarem de lado e cada um dos sujeitxs ler o que o outro escreveu? Será lindo esse encontro dessa forma também. Deixo um texto escrito por mim em 2020, sobre reflexão do texto em negrito onde eu e BRUNO lançamos algumas perguntas.
O ambiente escolar talvez seja mais um código de conduta de embranquecimento estético e epistêmico, que afeta decisivamente os corpos das crianças e adolescentes. E por quem ele foi pensado? Para quem e para quê? Quem escreve os seus manuais e códigos?
TIROCÍNIO.
Como dizer que o estado está comprometido com a igualdade perante a lei e educação? Sendo que o estado brancxcis governa pelo medo, pelo ódio e pelo
preconceito e não pela justiça e educação. Portanto, onde a justiça e educação é brancxcis, não temos como dizer que é justa. Ao acontecer dessa forma, pessoas não brancxs e não cis no contexto do brasil já nascem suspeitas, acusadas e condenadas. Sendo que a lei e a educação BRANCXCIS é um sistema de embranquecimento, cárcere, genocídio e epistemicídio.
O processo de formação como obra
Guilherme Teixeira, Pepi Lemes, Bruno Novaes e Agrippina Roma Manhattan criam dinâmicas que contrariam a instrumentalização do ensino
Leandro Muniz - Revista Select - out 2020
É recorrente que artistas assumam diferentes funções como forma de subsistência em um setor no qual há cada vez menos políticas públicas e no qual as dinâmicas de mercado são altamente competitivas e desiguais. Em alguns casos, porém, as diversas atuações – como artista, curador, professor etc – também possibilitam explorar as potências dessas práticas e suas contaminações mútuas, como em obras que abordam as questões da educação tal qual matéria ou aulas que se valem da inventividade do fazer artístico, borrando radicalmente os limites entre os dois campos.
No livro Art School: (Propositions for the 21st Century), organizado pelo escritor Steven Henry Madoff, uma série de relatos, análises de projetos e debates formulam as tensões surgidas a partir do trânsito entre a educação e a produção artística. Como a prática artística e a educativa se retroalimentam e se transformam mutuamente? Em que medida se instrumentalizam e se autonomizam? Os artistas Guilherme Teixeira, Pepi Lemes, Bruno Novaes e Agrippina Roma Manhattan, cada um a seu modo, internalizam as relações entre arte e educação, apropriando-se criticamente das “zonas de contato” entre elas.
(...)
A crítica da normatização
Cartilhas, diários de classe e outros instrumentos que buscam aferir presença, pontualidade e normalização de corpos são tensionados na obra de Bruno Novaes, que distorce, transtorna ou introduz contranarrativas nos usos desses materiais. Além da crítica às normatizações de gênero, raça e subjetividade imposta aos alunos, seus desenhos e instalações também falam das violências sofridas pelos próprios professores, questionando a estrutura dos sistemas de ensino.
“Ser professor é uma volta à escola, porque você se vê e lembra das camadas de tempo soterradas na sua experiência e lida com outras formas de violência” diz à seLecT. “O professor oprime o aluno, a direção oprime o professor, os pais oprimem a escola e a forma dos manuais de conduta replica essa dinâmica.”
Novaes produz desenhos que embaralham os gêneros dos manuais de ciências, introduz narrativas afetivas nos diários de ponto ou coleta relatos das violências sofridas por seus colegas professores, apresentando esse arquivo em uma instalação sonora. “Me interessa o currículo oculto, toda essa construção de aprendizados que não são iluminados pelo currículo oficial, como os afetos e os sofrimentos” diz.
Se a forma final de seus trabalhos em geral é leve, com cores que replicam a paleta rebaixada da arquitetura escolar e figuras esquemáticas que resultam em uma visualidade silenciosa, os conteúdos desses trabalhos são dramáticos, tensos. Os estereótipos de gênero ao longo da educação, por exemplo, são questionados desde as expectativas sobre os professores até a ausência de representação de corpos trans nas cartilhas e manuais. “Como as famílias lidam com os professores homens na educação infantil? Que clichês de maternidade são reproduzidos quando uma mulher lida com as crianças pequenas?”, questiona.
escola de faz-de-conta
Bruno Novaes - Revista Tonel - set 2020
Vou buscar num barril repousado o que decanta dentro. Do lado interno, misturam-se os tempos. Aquele líquido ganha, aos poucos, musculatura, corpo e resistência. E, quando exalado, inebria as conversas. Sentar-se em volta. Lugar de encontro. Entre um gole e outro, aprender. Nos atravessamos. Nossas vozes dobraram. Descobri que eles também moram do lado de trás. Torcem, pintam, descascam. Recolhem as coisas caídas. Ensinam com elas. Buscam rasgar as cortinas e deixar a luz passar. Encontrar outras pessoas que passeiam por lá. Descobrir os nomes dos próximos. Eu posso ter avistado alguns.
Aviso aquele menino. Cabelo tigela. Shortinho vermelho. Bota marrom. Vivia no fundo da casa. E do quartinho abria uma janela pro quintal. Chão de cimento quebrado. Das fendas nascia um pouco de mato. Escondiam-se ratos. Dentro da edícula, prateleiras que apareciam no deslizar do velho lençol estampado. Amaciantes, sabão em pó. Compras do mercado. Caixa de ferramentas. Uma lousa, uma mesa e duas carteiras. Brincar de escola. Horário de refazer gestos. Imitar professoras. Copiar lições. Matemática no quadro. Lista de chamada nas gavetas. Preencher, escrever, memorizar. Escola de brincar. Lugar da casa que se imagina. Espaço de fabulação. Com o carrinho de feira, inventava os caminhos para chegar. Estacionava na vaga demarcada com giz no chão. Era hora de dar aula. Repetir, repetir, repetir. Até que ficou diferente. Mudaram-se as lousas. As matérias. A disciplina. O trajeto era outro. Eram outros, os móveis. Não se tinham mais os produtos na dispensa. As ferramentas mudaram. As crianças, agora, assistiam às aulas. Participavam. Por espelho ou por esforço, ditavam o ritmo. O rumo. Faziam junto. Davam novos nomes para as coisas. Imaginavam novas coisas. Redescobriam as coisas como se fosse sempre a primeira vez. Brincar na escola.
Uma risca é traçada. União adulto-criança. Há um fascínio pelo real sem que seja preciso soltar-se da ficção. Uma lacuna se abre para as entrelinhas. Uma luz ilumina os espaços opacos dos corredores. Um som torna presente o canto. As quinas. A memória confunde camadas distintas de tempos. Estudante-professor. O jeito torto de olhar atravessa as paredes e enxerga um currículo oculto. Não-dito. Velado. Inventa-se outros manuais de conduta. Regras de convívio. Novas cartilhas. Reaprender a ler para reensinar camaradas, guris e maricas. Um novo modo de alfabetizar. Um outro jeito para oralizar. Volume a volume, se forma uma coleção de diários de classe. O cotidiano num espaço quadriculado para recontar histórias. Apostilas e mapas reinterpretam o mundo ficcional das imagens. Um corpo de trabalho constrói-se enquanto o corpo se entende docente. Sente-se doce-amargo-doente. Escolhe mostrar as falhas e faíscas nas situações de controle impreciso. Revelar rachaduras e abismos. As incongruências e distâncias entre intenções e gestos. A palavra convertida em caráter e o caráter ficcional da palavra. Queira ou não. Crente ou ateu. As coisas podem ser verdade. E o oposto também é real. Ficção e testemunho de mundo se confundem. Percorre-se um trajeto da autobiografia a um lugar inventado. Do pessoal ao político, do político ao pessoal. Confissões, depoimentos e relatos reforçam o coro. Vozes pueris. Vozes calejadas. Outros juízes da realidade cantam juntos. Desejam conceber o inexistente. Repensar as relações que se dão a partir da escola. Ajudar a olhar e ensinar o que viram. Aquele menino risca o giz no chão e desenha novos caminhos para o carrinho. Tira as botas de couro e a bermuda vermelha. A tigela agora lava o seu rosto e o seu quintal. Recolhe pistas. Traça alguma cartografia. Abre as janelas e encontra os vizinhos. Não deixa de brincar. Joga junto. Constrói o acervo, a documentação e a experiência de uma escola de faz-de-conta que se tenciona entre o potencial criativo e o fingimento em potencial.
As coisas que nos cercam
por Milena Espinoza - Grupo Entre Educação e Arte Contemporânea
Relato do encontro “Brincar de escola, brincar na escola”, com Bruno Novaes, realizado em 6 de julho de 2020
Por meio de uma chamada de vídeo, o grupo de pesquisa Entre - Educação e arte contemporânea - do qual faço parte - e outros interessados nos reunimos com o artista e educador Bruno Novaes. O diálogo foi guiado a partir do registro disponível das obras no site do artista. Assim, este texto trará alguns pontos tocados na reunião partindo da produção artística de Bruno e chegando aos relatos e leituras pessoais construídos coletivamente a partir dos trabalhos.
Cada participante da reunião se apresentou e comentou sobre sua relação com a escola, seja como estudante, ex-estudante ou professor. Nessa partilha brotaram memórias dos professores mais marcantes, experiências de tormentos que nos inquietaram na escola e críticas à mesma como instituição, questões que Bruno aborda na sua produção artística. Os integrantes do grupo escolheram antecipadamente uma obra do artista por meio de pesquisa em seu site e acredito que pelo fato que todos vivemos a experiência de ser/estar como aluno no espaço escolar, permitiu a identificação e o olhar sensível ao trabalho dele.
Trabalhos como Mapa de Sala (2014-2015) e Desenho Livre (2020) me conectam inegavelmente com memórias da escola, as intermináveis fileiras individuais justapostas em linhas paralelas, que centravam a educação no professor, impedindo a interação entre alunos entre si ou mesmo destes com os professores. Característica da metodologia tradicional, a qual sofreu inúmeras transformações, mas ,paradoxalmente continua resistindo ao tempo, sendo um dos modelos mais utilizados pelas escolas no Brasil. Posto que se prova ideal para um sistema em que, para ter acesso a universidade é necessário ter boas colocações nos vestibulares, isso se espelha nos cartazes publicitários das escolas retratado no trabalho aprovado_vestibular_mascara.jpg (2018). Mas será que realmente esse tipo de relação onde o professor é o detentor do conhecimento e os alunos assimilam e memorizam o que foi ensinado por meio de provas e trabalhos valendo nota propicia a aprendizagem ou gera conhecimento e desenvolvimento?
Refletindo em uma noção de educação mais ampla, o artista-educador nos comenta que o fazer artístico se deu também junto aos alunos, em uma constante troca com eles, misturando ateliê e sala de aula, o que deu como resultado muitos dos trabalhos expostos.
De encontro a esse olhar afetivo em relação à escola, aparecem também outros reflexos da relação, já que nesse labor no ambiente escolar surgem questões de bullying, sexualidade e gênero. As experiências pessoais de quem viveu nesse ambiente quando criança e que passa a reviver aquilo de novo na posição de professor são perceptíveis em trabalhos como Apostila de Ciências: ensino fundamental (2016) e Cartilha (2017-2019).
Explorar a instalação sonora Corpo Decente (2018), ouvindo os 50 minutos de áudio que coincidem a duração de uma aula, com os depoimentos de professores que foram censurados e/ou discriminados no ambiente escolar, me leva a reflexão da compreensão do papel da escola e a situação dos integrantes do sistema educativo. O artista recopilou os depoimentos de professores próximos e depois fez uma chamada por redes sociais para acolher um público mais diverso. A partir da própria história de discriminação do artista, a qual se encontra evidenciada no trabalho Jogo dos erros (2018), que consiste em duas versões de um informe de desligamento de uma escola particular, se consegue dar voz a outros professores que também passam situações semelhantes.
A produção de Bruno Novaes aborda questões de memória e afeto em maior medida em trabalhos como Diário coletivo de (in)significâncias (2018), uma ação urbana onde Novaes escuta confissões e histórias pessoais de participantes, enquanto vai criando anotações e desenhos que compõem um caderno-diário que depois é exposto; Passagens (2015-2017), garrafas de vidro que contém desenhos, anotações e objetos de viagens, expondo um segredo tornado público onde resta ao observador criar sua própria narrativa a partir dos fragmentos que podem ser vistos; As cartas que não te enviei (2017-2019), cartas para relações platônicas da adolescência que viraram vasos em papel machê e de novo papel em fotografias. Estas obras nos apresentam um novo olhar para as coisas que nos cercam, as histórias das pessoas, as relações que construímos.
Existe certa ambiguidade no trabalho de Bruno, trazendo coisas que poderiam ser privadas e íntimas a um espaço público, tratando com um olhar sensível questões ácidas e difíceis de se falar. Finalmente desejo concluir este texto com a frase que está no rodapé de página do site do artista: Sei que sussurro para quem consegue ouvir.
Bruno Novaes e os dias de chuva
por Mirtes Marins de Oliveira
Na exposição O professor deverá ser o último a se retirar, mesmo nos dias de chuva (Paço das Artes, 2019), Bruno Novaes propôs um diálogo entre ambiente escolar e alguns conteúdos disciplinadores do campo educacional a partir da evocação da experiência no espaço-escola, a sua própria e aquela que, intui, muitos viveram como alunos e outros como professores. Atuou como professor por uma década ampliando as brincadeiras de criança, quando na Rua Maceió, em São Caetano do Sul, construía ambientes escolares imaginários. Assim, seu interesse em ensino e aprendizagem em arte é uma constante, corporificado nos trabalhos.
O artista oferece ao visitante envolvimento sensorial e afetivo naquele universo, como por exemplo no trabalho Ensino Confessional (2017-Atual), que solicita a participação na produção de confissões pessoais, inseridas de forma anônima e repetida em caderno de caligrafia e, de forma geral, instalado em carteira típica de salas de aula do século XX. Esse exercício, no qual a maioria dos visitantes participa com empenho e cuidado, mobiliza a memória sobre aquele espaço-escola a partir de suas formas recorrentes, disseminadas pelos processos civilizatórios do século XIX. Os cheiros, sonoridades, mobílias, organização espacial, cores, entre outros elementos, são característicos do formato arquitetônico escolar globalizado, pelo qual quase todo o mundo ocidental pautado pela hegemonia europeia no campo escolar teve contato. Por outro lado, sem dúvida, a articulação histórica da escola brasileira ao passado religioso com finalidade de catequese é provocada nesse mesmo trabalho, criando um ambiente no qual confissão, culpa e penitências estão presentes de forma transitória. O autor investe de forma precisa nestes lugares ambíguos, conectando saber e poder, singelezas e arbitrariedades, civilidades e violências, fragilidades e brutalidades.
Além disso, cria contrapontos mais contemporâneos e documentais, como em Corpo Decente (2018), instalação sonora com depoimentos de censura ou discriminação aos professores em ambiente forrado com centenas de quilos de giz branco. Nessa relação entre som, estímulos olfativos e conteúdos a narrativa da instalação justapõe a censura aos alunos e professores.
Historiadores da educação apontam para a expressiva significação do espaço-escola como elemento curricular, fonte de experiência e aprendizagem, um currículo oculto, controlador de movimentos, costumes (VIÑAO FRAGO; ESCOLANO, 2001) e do tempo com seus ritmos próprios, herdados da vida nos conventos. Para os autores, a arquitetura escolar é um discurso que institui na sua materialidade um sistema de valores, como os de ordem, disciplina e vigilância, marcos para a aprendizagem sensorial e motora e toda uma semiologia que cobre diferente símbolos estéticos, culturais e também ideológicos (VIÑAO FRAGO; ESCOLANO, 2001). O debate sobre o espaço tem impacto nos estudos contemporâneos desde a concepção física desdobrada em suas dimensões sociais, políticas, imaginárias e virtuais e o edifício escolar – e seu aparato material, as mobílias e superfícies – relaciona diferentes práticas históricas, superpõe técnicas de controle e experiências diversas dos seus habitantes. Os vestígios dessa vida podem ser captados a partir das provocações de Novaes, que, ao oferecer a materialidade física daqueles espaços, também apresenta a superposição dessas temporalidades para seu observador participante. Não foge ao seu radar a organização formatada e impeditiva da liberdade dos corpos, envolvidos, no ambiente escolar, na burocracia dos espaços e dos tempos, adestradores de obedientes, reguladores para uma vida correta e longe dos desajustes sociais.
Não é possível tomar contato com esses trabalhos e não verificar as limitações do campo educacional e suas instituições como lugar de reflexão crítica ou ativadora de atitudes comprometidas com justiça social.
No caso específico da exposição, nas séries apresentadas, Novaes tende para a ambiguidade das formas exibidas – cuidadosas, delicadas, nostálgicas - em confronto com os elementos de opressão daquele ambiente, em particular no que diz respeito às questões de gênero e de orientação sexual, apontando o bullying violento e tradicional que caracteriza a manifestação de preconceitos sociais sobre essas questões. Nesse sentido, Pequenos Legados (2019) apresenta a visualidade nostálgica dos anos escolares de maneira sensível mas que vai fechando o cerco em torno de uma herança material esvaziada de suas funções, ou que se transmutou em outros meios, mas que continua como pano de fundo intimidador do espaço-escola. Na exposição ficava evidente por meio do trabalho Jogo dos Erros (2018), por exemplo, que os sutis e sistemáticos ataques sofridos na infância e na escola, continuavam sob a forma mais perversa da perseguição disfarçada de preocupação: Bruno foi demitido de uma escola porque representava algo perigoso. Resta perguntar para quem.
As condições sociais nas quais a exposição foi inaugurada também leva a refletir sobre as diversas situações nas quais o circuito artístico era, naquele instante, agredido: assim como a definição do que seria educação passava por um esvaziamento simplista, a palavra arte era capturada por um filtro redutor que a pausterizava ao gosto de alguns, cujo pano de fundo parece ser uma estereotipada e generalizante noção de tradição artística pré-moderna. Nos dias atuais, no Brasil, esse constrangimento parece tomar conta do espectro não só da cultura, mas a todas as dimensões da vida.
Há no conjunto de obras de Novaes uma outra evocação do ambiente educacional, a presença e importância da palavra, que designa, restringe mas amplia o mundo. Muito atento à sua potência a partir de seu uso, o artista identifica sua violência, demonstra as contradições presentes nos enunciados e como a palavra serve, também para a denúncia, reflexão e ação. Novaes é também cantor e o interesse na palavra esteve sempre presente: as modulações, extensões, sonoridades surgem nas instalações e como desenhos. Afirma: a palavra chega antes da imagem no processo criativo, como som, elemento gráfico, designações. Exemplares, nesse sentido é o conjunto denominado Manual de Conduta de Corpo Docente (2018), no qual textos e imagens sutis vão, a partir de processos de corroboração e contradição, construindo ou reconstruindo um cenário de pressão e violência explícitas.
Referência
VIÑAO FRAGO, Antonio; ESCOLANO, Agustín. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa.
Tradução: Alfredo Veiga-Neto. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 152 p.
Entrevista com Bruno Novaes por Mirtes Marins de Oliveira
para a exposição O professor deverá ser o último a se retirar, mesmo nos dias de chuva - Temporada de Projetos - Paço das Artes - 2019
Inicio perguntando sobre a origem de suas práticas artísticas. Parte da relevância dos trabalhos que realiza reside nos problemas que coloca diante de uma realidade social e política cada vez mais tensa a respeito das questões de sexualidade e gênero no ambiente escolar e na compreensão do papel da escola e da educação. Como você localiza sua produção nesse contexto?
Bem, percebo alguns pontos de origem na minha prática. A começar pela palavra que sempre foi importante para mim e para a qual há uma relação anterior mesmo da minha produção em artes visuais. Como cantor, a palavra já era meu interesse. Minha monografia na pós graduação, inclusive, foi a respeito da palavra na canção popular brasileira. Acho importante dizer isso, porque acredito que seja desse lugar que parto muitas vezes. Em quase todos os trabalhos a palavra chega antes da imagem para mim no processo criativo. Seja como som, como elemento gráfico, como título. Me graduei em Design, e apesar de nunca ter trabalho como designer, noto também que existe o olhar naquilo que faço de quem se inclinou para o assunto. Fiz minha licenciatura em Arte e fui parar na escola. No ambiente escolar fiquei por uma década. Estar ali era, de alguma forma, voltar à minha brincadeira favorita de infância: a escolinha no fundo da casa da rua Maceió, ambiente equipado com lousa e carteiras de verdade, já que meu avô era marceneiro. Acredito que este seja outro lugar de origem pra mim. Com o passar do tempo, depois de assumir minha produção visual, é que consigo ver que esses pontos se confundem e se cruzam. São como matrizes adormecidas, que de vez em quando pulsam e trocam de lugares.
Sobre o contexto da educação, nos últimos anos, o fazer artístico se deu também junto aos alunos, de forma relacional, misturando ateliê e sala de aula, caminhando para uma noção de educação mais ampla. Isso é equivalente também na exposição, quando o público participa. É educativo mesmo fora dos muros da escola. Me interessa esse lugar entre arte e educação. Produzir dentro e fora de sala de aula enquanto o cenário brasileiro foi se tensionando, naturalmente também me afetou. Sala de aula, vida e trabalho, se misturam. E por esse corpo também passam as questões de sexualidade que você comenta. Há uma relação entre o que vi ali depois que voltei para aquele ambiente, já adulto, e o que passei naquele lugar quando criança e adolescente: piadas, opressão, o crescer ali dentro. Isso não foi e nem é só meu, mas estar ali como professor e viver aquilo de novo, faz com que meu trabalho toque nessas questões. Gosto desse lugar de quem observa a vida ao redor, silenciosamente. Coisas que poderiam ser privadas e íntimas, se confundem e tomam espaço público, termos, documentos, protocolos da escola ganham outros significados.
Peço que você relate, na medida do possível e de seu interesse, a questão de seu desligamento de uma escola particular que resultou nos documentos expostos na mostra. Por que decidiu transformar esse informe – seu desligamento - em obra?
Pela troca e relação que eu tinha com aqueles alunos, nessa escola, durante seis anos intensos, produzindo junto com eles muitos dos meus trabalhos. Essa mistura de vida pessoal e trabalho, essa mistura que está presente na minha produção, de certa forma é também responsável pela ruptura. Mas o que me assustou foi a maneira conturbada e preconceituosa desse desligamento, além de silenciosa e velada. Acho que o silêncio é o que mais incomodou. Depois de um tempo para digerir é que as ideias chegaram. Entender o que aconteceu, porquê e para quê, algo que ocorre também com outros professores, e poder dar voz a essas vozes.
Como professor que também é artista, ou artista que também é professor, você verifica diferenças em termos de recepção dos públicos? É necessário estar na condição de aluno para uma compreensão mais sensível de seu trabalho? Você percebe diferenças nessa recepção?
Como quase todo o público é ou já foi aluno, o resgate é realizado pela memória e cada geração acaba tendo a sua percepção de acordo com o tipo de escola que viveu. Há também quem se coloca no lugar do professor, ou professores que se percebem novamente professores ali.
A escola que você evoca nas instalações, desenhos, objetos parece não existir mais, principalmente porque as recobre de um olhar sensível e amoroso. Você poderia falar das origens de seu trabalho e se existe de fato essa perspectiva? Claro que alguns trabalhos são comentários muito ácidos sobre a questão do bullying e dos preconceitos presentes no ambiente escolar, mas verifico uma ambiguidade nesse tópico.
Totalmente. Essa ambiguidade me interessa. Não acho que somente gritando é possível de ser ouvido, gosto das sutilezas, do sussurro. Me interessa essa amorosidade para falar de questões ácidas e difíceis. Talvez esse olhar sensível esteja associado ao fazer naquele espaço, de estar verdadeiramente presente nele e das relações que construí ali. Há alguns anos, esse lugar não existe mais para mim. Hoje essas escolas acabam sendo semente que ajudam a recuperar a memória do primeiro espaço escolar, a escolinha nos fundos da casa. E memórias podem se confundir, idealizadas ou romantizadas. Pode ser que eu esteja de novo brincando de escolinha. Ou que nunca deixei de brincar.
Entrevista para o Arte Londrina 7
O artista Bruno Novaes também respondeu algumas perguntas feitas pela DaP. Ele reside em São Bernardo do Campo – SP e participa da 1ª exposição ARTE LONDRINA 7 – MELHOR SER FILHO DA OUTRA.
COMO UM TRABALHO COMEÇA?
Quase sempre pela palavra. Seja como título, como elemento gráfico, como poesia. E de alguma maneira eu preciso viver aquilo para que ele possa nascer. Sempre está relacionado à minha própria vida, mesmo quando carregado de ficções e camadas inventadas ou transformadas.
QUE ARTISTAS OU TEÓRICOS VOCÊ CONSIDERA IMPORTANTES? POR QUÊ?
Me interesso por diferentes frentes da arte. Gosto da Sophie Calle, Leonilson, Felix Gonzalez Torres, por exemplo. Mas também por Maria Bethânia, Cazuza, Chico, Caetano, Caio Fernando Abreu, Guimarães Rosa.
O QUE VOCÊ ESTÁ LENDO?
Li recentemente Nú de Botas, do Antonio Prata, que foi uma experiência deliciosa e afetiva de voltar à minha infância. Reconheço que ali tem uma semente da última série que pintei: Pequenos Legados.
QUE TIPO DE COISA CHAMA SUA ATENÇÃO NO MUNDO?
As histórias das pessoas. A infância, a adolescência. As relações que construimos. Nossos códigos, protocolos, atividades sociais, dentro e fora da escola. Gosto de observar de modo silencioso o que está ao meu redor e trazer isso a público, de alguma forma.
O QUE VOCÊ ESTÁ PRODUZINDO AGORA?
Terminei agora uma série em que resgato minha brincadeira de infância favorita. A escolinha que eu tinha no fundo da casa dos meus pais e que venho revisitando para que dê em trabalhos. Pintei algumas aquarelas sobre aquele brincar, os objetos envolvidos ali naquele quarto, na escola propriamente dita enquanto aluno, pensando também nas relações possíveis com os dias de hoje e com minha própria atividade como professor no presente.
QUE SITES VOCÊ COSTUMA ACESSAR?
Gosto de ler o que os pesquisadores do Arteversa (UFRGS) escrevem. É um ótimo canal que fricciona Arte e Educação.
QUE MÚSICA VOCÊ OUVE?
Música brasileira. Maria Bethânia, Chico, Caetano, Noel, Adriana Calcanhoto, Filippe Catto, Diego Moraes, entre tantos outros que vou descobrindo.
QUE EXPERIÊNCIA COM ARTE FOI IMPORTANTE PARA VOCÊ?
Me lembro quando adolescente que vi pela primeira vez a Ópera do Malandro no teatro. Ali sem dúvida foi uma experiência inesquecível tanto é que sempre cito quando me perguntam sobre o assunto. Mais adulto, as duas últimas exposições que vi do Leonilson mexeram muito comigo.
NO TRABALHO APRESENTADO, CAMINHO SUAVE (2018) COMO SE ESTABELECE A RELAÇÃO ENTRE IMAGEM E TEXTO?
Aquele trabalho parte do livro que lancei em 2018, Alugo para rapazes. Este livro registra diversos encontros que tive por meio de aplicativos. Fiquei um ano me encontrando com vários caras e de cada encontro surgia um poema e um desenho de algum objeto sobre aquele cara ou o lugar em que estávamos. Os poemas que lidavam mais com o corpo eu usei para desdobrar no Caminho Suave. A imagem é o objeto que está representando o encontro e a palavra é retirada do poema correspondente.
Julia Lima
para a exposição Capítulo2: O professor deverá ser o último a se retirar, mesmo nos dias de chuva
Casa do Olhar Luiz Sacilotto - Santo André - 2018
Sabemos que a escola pode ser um espaço de fomento à criatividade, às descobertas, à experimentação e à expansão dos saberes, mas é igualmente verdade que ela também pode ser um lugar de controle, de endurecimento e de repressão. Essas forças antagônicas que operam no ambiente escolar não se manifestam apenas na vivência dos alunos – hoje elas são presentes, com idêntica intensidade, na atuação dos professores, na vigilância implacável de cada palavra, cada ação e cada aula.
No nosso tempo, o livre pensar se vê crescentemente circunscrito: escolas sem partido estão repletas de religião; discussões e materiais didáticos sobre diversidade sexual são desonestamente chamados de doutrinação; e disciplinas que poderiam ampliar os horizontes, promover o questionamento, e alimentar a criatividade e singularidade são o mais recente alvo do desmonte sistemático do ensino. Em meio a esse contexto trágico, não há postura mais radical do que enfrentar esse sistema de forma independente – seja como professor, seja como artista.
Nesta exposição encontramos trabalhos que se ancoram numa linha tênue e borrada entre essas duas formas de agir no mundo. Bruno Novaes atuou como professor de arte por vários anos em escolas particulares, lidando com alunos do Ensino Fundamental e Médio. Em paralelo, vem desenvolvendo uma pesquisa artística própria, uma produção pautada no desenho, aquarela, escrita, e em suportes tridimensionais como objetos e instalações. No entanto, essas duas ocupações sempre se confundiram e se contaminaram: seus trabalhos são construídos a partir de vivências pessoais, tanto quanto de apropriações das experiências em sala de aula – inclusive realizando trabalhos em colaboração com seus alunos.
Contudo, houve um momento em que essas duas vidas não puderam mais coexistir, em um choque irreconciliável entre a esfera privada e a figura pública do docente. Esta exposição é, assim, como um segundo capítulo na grande narrativa da pesquisa do artista: a primeira parte apresentada sob o viés das relações pessoais, “Capítulo 1: O corpo mente menos que as palavras”, explorava desenhos e aquarelas sobre encontros românticos e experiências sociais; agora, sob a perspectiva da colisão dessa dimensão com a persona do professor, Novaes traz trabalhos inéditos que refletem sobre o papel da escola, do aluno, do mestre e da arte na rede de produção de significados em que todos nós estamos inseridos. Por meio de brincadeiras, simulacros, provocações e resgates históricos, o artista nos convida a pensar sobre todas as regras invisíveis ou disfarçadas que formatam o ensino no Brasil, revelando as rachaduras, abismos e falências que permeiam todo o sistema. Diante desse cenário, deve mesmo o professor ser o último a se retirar?
Julia Lima
para a exposição Capítulo1: O corpo mente menos que as palavras - Oma Galeria - São Bernardo do Campo - 2018
Talvez longe, em Júpiter, eu consiga escrever sobre você. Agora só é possível falar para você, com você, que se expõe inteiro em um diário, derrama todos os fluidos íntimos ali nas páginas amareladas e rabisca sem pudor o retrato de cada encontro, de cada toque, de cada membro. Eu, tão aberta, tão falante, não consigo me oferecer assim e você, tão tímido e contido, revela-se no papel mais do que eu jamais pude contar. Eu não sei contar vantagens, a transparência sempre foi a fragilidade daqueles que se apegam ao tamanho real das coisas e não há poesia alguma nisso. Outro dia aprendi que a criatividade é energia masculina, e não feminina – o feminino não cria, e sim gesta, incuba, nutre e fomenta. Você faz da sua vida sua matéria, do seu corpo seu instrumento, seu corpo a carne que alimenta toda criação. Falsa é a carne, você diz, entre tantos outros versos que às vezes me faziam corar, e outras várias balançar a cabeça pensando ele entendeu tudo, tudo. E se a carne é falsa, mas o corpo mente menos que as palavras, como sabemos o que é o real? No princípio era o verbo! E a verdade é que a linguagem importa, as palavras querem dizer algo, mas dissimuladamente carregam significados que não são os que queremos imprimir, não explicitamente. A precisão da linguagem é um jogo perigoso e os nomes das coisas podem nos enganar, nossos vícios e inflexões criando zonas movediças de ambiguidade e ruído. As palavras não são suficientes para ti, que insiste em retratar coisas íntimas como efígie, que caminha na fina linha entre imagem e discurso, entre objeto e signo, criando uma terceira margem semiótica onde só a sua vivência é capaz de completar os sentidos. Como você chama mesmo? O seu nome se confunde com os nomes anônimos que você, durante um ano inteiro, sucessivamente descobria nos aplicativos afetivos com um apetite de presença e desfastio que imediatamente se materializava em companhia; em seguida, voltava ao buraco vazio apenas para, num novo dia, se preencher com um diferente alguém. Esses encontros se tornaram ilustrações e versos, que por sua vez se tornaram livro, que por sua vez se tornou aquarela e desenho, transbordando até onde se vê aqui. De um lado, palavras não correspondem às figuras, são estranhamente separadas em sílabas coloridas – os impasses da linguagem nos atravessam, mas há algo mais desconcertante ali na distância entre a língua e a bola. O apelo infantil do controle de videogame, do compasso e da mochila inusitadamente se choca à sensualidade dos vocábulos que balbuciamos pausadamente entre uma cor e outra. É como se estivéssemos aprendendo a ler de novo ou decifrando pequenos enigmas que não tem resposta certa. Do outro lado, delicadas aquarelas convivem com escritos quase imperceptíveis, informações objetivas de geo-localização que nos revelam as coordenadas de latitude e longitude para cada objeto. Querido, o mundo é exato, mas o ser humano não, é impossível organizar de forma cartesiana a experiência que você diligentemente documentou por um ano inteiro nas páginas do seu diário (que agora pode ser comprado por qualquer um, que coragem). O artista procura no que faz algo de si, precisa reconhecer-se. Escrevendo agora, seus trabalhos me fizeram lembrar de como o mito de Narciso é uma imagem fundadora para a psicanálise, mas também para a arte – o belo jovem está amaldiçoado a ver-se e não enxergar nada mais, e a ninfa apaixonada por ele está fadada a apenas repetir as últimas palavras que escuta. O fascínio com a imagem e a obsessão com a palavra são apresentados lado a lado, a imagem de si que parece do outro, a voz do outro que volta como minha própria. Conhecer a si mesmo e ao outro é de uma potência tremenda, e eu já esqueci do tempo que não te conhecia. Te falo agora em primeira pessoa porque, por sorte, não sofremos de transtornos narcísicos, conseguimos buscar o que há de mim em você e o que há de você em mim – desde que não nos afoguemos nos nossos reflexos e que aprendamos a escutar mais profundamente do que apenas repetir o que nos é dito. Na tragédia clássica, Narciso se torna flor, Eco se torna pedra, objetos como os que você tão afetivamente representa. Queria saber qual seria o objeto que simbolizaria meu retrato, talvez você me conte numa resposta a essa carta ou com um novo trabalho, meia vida depois. Eu, como você, queria ter um amigo, mas encontrei um artista.
Segredos aprisionados em garrafas de ar
por Juan Casemiro
no contexto da exposição de Passagens no Memorial da América Latina/SP - 2015
Bruno Novaes aprisiona dentro de dez garrafas, desenhos feitos sobre passagens de trem, fotocópias de anotações, fragmentos de um caderno de artista e por fim um cadeado. Um trabalho de colecionador que, ao guardar estes “restos” produz uma espécie de contra-monumento. Colocado aqui no sentido de que esta obra se opõe à monumentalidade, a maior garrafa mede 31 centímetros. Um contra-monumento também por não se impor fisicamente ao solo e tampouco datar-se como uma coisa terminada. As garrafas são soltas, permitem ao artista a liberdade de criar novos arranjos para cada lugar em que ela for montada.
A instalação funciona como um princípio de montagem, onde ao aprisionar os desenhos em garrafas transparentes se permite que aquelas memórias (passado) sejam vistas e ressignificadas (presente) por quem as contempla. Passagens, trabalho acabado ou inacabado, garrafa aberta ou fechada, sugere uma nova forma de ler e interpretar um passado, um amontoado de memórias, tomando por material seus cacos. Bruno faz um trabalho de colecionador das suas próprias lembranças, em que trechos da história foram interrompidos e condensados na superfície de papéis. Aqui, genuinamente, a história é escrita a partir das imagens que, via de regra, pertenceram a um dado momento da vida do artista e agora se coloca como narrativa perdida. Não há começo nem fim. Passagens sugere este caminhar desregrado por entre garrafas de memória.
São desenhos como relatos de um flâneur que percorreu a Paris contemporânea em contraste com a que Benjamin descreve. E depois guardou estes olhares em garrafas, tapando-as com rolhas, talvez na tentativa de conservá-los. Passagens também pretende que as imagens sejam a sua própria dimensão temporal: estão situadas dentro de um corpus espaço-tempo, e já não se manifestam em seu estado bruto, mas como cacos de uma história. Os desenhos se encontram rasgados, algumas passagens de trem estão sobrepostas, e a obra se apresenta como este emaranhado de papéis que o artista produziu em diferentes épocas. Um colecionador. E estando nesta condição, Bruno aprisiona esta coleção e a torna pública, mas que permanece em segredo. Sua obra consiste em expor um segredo tornado público, e colocado em estado de conserva. Resta ao observador criar sua própria narrativa a partir dos fragmentos que podem ser vistos. Em voz baixa: o trabalho de escolher em quais garrafas os desenhos iriam ficar se assemelha ao pingar da chuva dentro das garrafas no filme de Tarkovsky. Com a diferença que a água evapora e deixa apenas uma quase-marca na superfície, e na instalação de Bruno Novaes eles permanecem como se na verdade ali houvessem vidros de loção prontos a evaporarem quando alguém, por um descuido, retirasse a rolha.